segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

um airbag onírico

havia uma estranha forma de massa atmosférica, aérea, que há algum tempo parecia posicionar-se em seu redor. era densa, uma espécie de airbag. por vezes aquilo disparava, algum solavanco mais forte, e ela ficava completamente enterrada naquela coisa almofadada, algo agradecida, pelo amortecimento do choque, mas ao mesmo tempo cada vez mais intolerante ao facto de todo o espaço vazio à sua volta estar preenchido por um mecanismo de defesa tão espaçoso e claustrofóbico. na maior parte das vezes essa espécie de airbag estava recolhido, ainda que preenchesse à mesma todo espaço, como se se constituísse, tácita e inexplicitamente, como a própria condição formal da existência do espaço. os direitos do espaço enquanto forma pura iam todos por água abaixo e o vazio não era pleno, mas um falso vazio, mais do que definido e predefinido por essa condição airbagiana do espaço.

num sonho muito agitado, esta ideia que não a largava circulava de todas as formas e feitios, assumindo uma série de variações nas narrativas fragmentadas pelo constante despertar. a luz estava ligada e iluminava o espaço em demasia, a noite não parecia bem uma noite. não havia suficiente impulso vigilante para a ir desligar. tudo acontecia num limbo que prendia os movimentos sensório-motores. tentava em vão movimentar um braço, alcançar o interruptor da luz com o olhar e esperar uma reacção corporal em conformidade. mas nada daquilo tendia efectivamente para a acção e tudo se voltava a misturar com o problema do airbag, que era urgente solucionar antes do dia recomeçar. se nos carros há um botão para desactivar o airbag, esse botão também terá de existir fora dos carros, nestes airbags não menos reais, mas feitos de matéria onírica. a cada micro-despertar - a luz, era preciso desligar a luz para encontrar o botão do airbag - o botão voltava a sumir-se, bem como todas as vias que a ele pareciam estar a levar. num dos primeiros sonhos ela conversava no banco traseiro de um táxi sobre o tempo em que os carros não tinham airbag e o taxista, um emigrante de sotaque indecifrável, assegurava que os airbags sempre tinham existido, que até os tuctucs, esses sucedâneos dos veículos primitivos à tracção humana, os tinham, mas que vinham de um mecanismo interior da máquina, não podendo ser activados ou desactivados quando se queria. a história do airbag começava a ganhar contornos labirínticos e os labirintos pareciam ser de todos os tipos, desde os mais centrados aos acéfalos, absolutamente sem centro nenhum, àqueles que eram só uma linha. e num comboio em que lia descontraidamente a paisagem chuvosa com a sobreposição das formas da água da chuva no vidro e escrevinhava gatafunhos tortos pela trepidação, novamente a história do airbag começou a fazer-se notar. os desenhos criados pela água da chuva no vidro do comboio eram bastante consoladores. o que era vertiginoso era quando o comboio, depois de parar, voltava a ganhar velocidade, e as linhas moventes agarradas ao vidro lutavam pela sua vida, colando-se a ele tanto quanto podiam, num magnetismo qualquer entre a água, o ar e o vidro, mas iam mirrando e desaparecendo, sugadas por um fantasmagórico vácuo, até serem apenas gotículas desfazendo-se em nada. depois novamente a chuva, as formas e a paragem, a janela ou o quadro. o frenético movimento das formas semi-transparentes e aparentemente diáfanas que escondia uma densidade e opacidade maiores. era preciso desactivar aquilo. levantou-se bruscamente. ia finalmente apagar a luz, para se encontrar com a noite. mas ainda estava no comboio, o interruptor da luz tinha desaparecido e ao longe havia uma passagem entre carruagens, que deveria atravessar. um gato saltou subitamente por cima do seu corpo. soltou um grito seco e levantou-se. apagou a luz. não era o botão do airbag, mas era como se fosse.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

deixam cair, as mãos

minhas mãos semi-abertas, os dedos todos órfãos, mãos doridas cansadas petrificadas na terrível ausência, tão bela imagem do amor, da rosa sem porquê, ajeitaram o filho à anca, afagaram o corpo querido, entre os ritmos perdidos, em minúsculas pregas, das mantas que cobrem, dos lençóis dos dias e das noites, seguraram contra si corpo-a-corpo, as mãos, corpo-a-corpo, por todo o lado se encontraram com eles - os misteriosos ritmos - que assim fizeram da vida um ser manual e das mãos a própria vida. agora que são dores, as mãos, e de seus gestos nada, para além da clausura no alto dos seus pontiagudos nós (perguntam-se, quando foi?), deixam cair o mundo no chão.

sábado, 18 de novembro de 2017


chamou-a pelo meu nome, com os olhos carregados, uma vaga esperança de a reconhecer, talvez, de se reconhecerem no meio dos escombros e dos estilhaços do passado, de todo o passado, do passado de há um segundo atrás, deste momento já a tornar-se passado. de todas as ruínas do mundo. se fosse possível pedia-lhe que não a tratasse assim, pelo nome, que há tantas outras maneiras de se tratarem, de nos tratarmos. mas não é possível. não há saída deste beco de mundo de pressuposições que vem depois do nome. tudo começa por essa enorme e enganadora pressuposição, o nome próprio, o nome pessoal. na sua dimensão literal, não só é uma delicia, como é o que nos salva. seria muito desagradável não nos podermos chamar uns aos outros. e não haveria chamamento se não houvesse nome. nem seriamos esperados em terra. mas há um outro fenómeno agrafado ao nome, uma totalidade de pressupostos que se convencionou associada ao nome. eu sou aquele que se chama assim, dizia alguém: a distância justa entre o nome e eu, entre o chamamento e a identidade forçada. chamar-se alguém pelo nome é coisa rara. como quando os adolescentes apaixonados escrevem sem cessar o nome do seu bem amado até se perder o sinal e ficar apenas a mancha do nome, antes cicatriz natal.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

nevoeiro e nuvens




há no nevoeiro uma propriedade especial e estranhamente espacial de dar provisoriamente corpo a um vazio. um corpo subtil mas concreto e fecundo, que não se pode ver mas que de uma maneira ou de outra teremos de atravessar. ele afirma-se numa insistência nua, elemento húmido e disposição melancólica que nos atravessam. porém é tão fugaz e tão limpo o seu desaparecer - não deixa traços - que fica apenas o desejo elementar e abstracto do atravessar e do ser atravessado. 


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

nevoeiro


num dia como outro qualquer em que a vida vinha inteira parecia querer entregar-se às coisas pequenas, entrou no café da esquina para beber um café ou uma água. tinha agora esplanada, nesta nova cidade repleta de luz, e havia pessoas nas mesas lá fora conversando entre si, outras com os seus cães, com boinas, telemóveis, cafés e cigarros, com e sem fumo, headphones. a intenção perdera-a ao entrar, mas fez à mesma sinal ao empregado: um café, por favor. era um pretexto. talvez ali estivesse unicamente para ver entre os tectos e as mesas aquele desenho feito de subtis linhas semi-transparentes, que replicava os efeitos das paredes num jogo de reflexos de luz e profundidade. ou então para se aproximar da experiência da duração, à medida que os velhos e as velhas que chegavam do lar se iam juntando o mais demoradamente possível, num contínuo de gestos tão lentos que já eram apenas gesto, pura dança, num dos cantos da sala, para o almoço. saiu como quem sai depois de beber um café ao balcão, com a sensação de tarefa cumprida, ainda que parecesse fazer tudo parte de um esquema para poder observar o real de pleno direito, colando-se a ele como a um habitat, para não cair, como a carraça ao mamífero ou a lapa à rocha. lá fora, uma nuvem tinha descido à rua, tornando-a branca e suave, como num sonho. o nevoeiro adensava-se. viu-o aglomerar-se por entre as árvores da floresta. sentiu no seu próprio corpo essa propriedade especial e estranhamente espacial de dar provisoriamente corpo a um vazio. um corpo subtil mas concreto. fecundo vazio que não se pode ver, mas que de uma maneira ou de outra teremos todos de atravessar. sentiu-se atravessar pela sua insistência nua, o elemento húmido, a disposição melancólica. mas é tão fugaz e tão limpo, desaparecer do nevoeiro, não deixa traços. ficando apenas o desejo subtil e abstracto do atravessar e do ser atravessado.

26 out 2017

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

 A água cai em cordões verticais e vivos, cantando. Cria-se uma nova, ou muito velha, solidão, onde o súbito gosto da pureza se mistura ao temor. A água é uma matéria em si própria delicadíssima e exaltante. Talvez os homens desejassem estender-lhe as mãos, voltando-as de todos os lados, para ficarem bem molhadas. É uma água vasta e nua, maternal.
 As casas tornam-se muito isoladas, a uma severa distância umas das outras. Não é tempo de comércio entre as pessoas, de qualquer espécie de fraternidade. Sabe-se pouco a respeito da água da chuva. É esta uma ilha estéril, fechada em cal e areia. Há as estiagens. E então sucede o absurdo. O talento do absurdo é criar o excesso. Por isso cai às vezes uma chuva avassaladora. A carne concentra-se para a receber, e aceita-a.
 Poder-se-ia sair das casas, e não somente estender as mãos à grande chuva, mas deixá-la mesmo encharcar as roupas e a pele, limpar o homem de uma porção de coisas que não prestam. Seria possível andar nu debaixo da água cantante, as próprias pessoas cantando com alegria e terror sagrado. 
 Mas cada qual se encerra na sua solidão. Liga-se às vontades celestes por uma comoção enigmática.
Os caminhos confundem-se, os telhados de terra batida alem, o enxurro ganha os campos. Desaparece essa frágil ordem que se cria para andar sobre os abismos. Em dois dias perdem-se todas as pistas do ano. Desapareceram os centros da vida, centros de audaz inteligência, onde se teceu, à volta, o pavor da morte - a malícia de enganá-la e a pequena vitória com seu anel de alegria. Absorveu-os a água.


(de: uma ilha em sketches. Herberto Helder)

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

sempre achei, em criança, que havia mais no exercício de conjugar verbos que o mero, por tantas vezes aborrecido, declinar. algo me envolvia, um afecto inexplicável, uma espécie de desdobramento, de abertura, que acontecia ao declinar e conjugar um verbo e depois outro. como, comes, come. comerei, comerás, comerá. comemos. morreremos, morrereis, morrerão. morreu, morri. suplicaria, suplicarias, suplicariam. tinha saltado, tinhas, tinha saltado, havia. haver. haver de fazer. saltássemos ou desejássemos. se víssemos, vísseis, vissem e viessem, veriam. esperando, esperava, esperavas. encontrámos, encontrastes, encontraram e ficaram, amaram. amou. amaria. perdemo-nos, perdestes-vos, perderam-se. desdobrar-se-iam. tanto tempo, tanto modo. e tudo infinitivo.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

alguém me disse que ia receber uma prenda hoje. então, miúda, diz-me lá o que te aconteceu para vestires a camisa do avesso. perdi-me ligeiramente num voo de segundos por uma nuvem sobre o direito e o avesso, mas logo me foquei nos meus afazeres. dormir, acordar, sempre do lado certo da cama, andar pela cidade, nem se perder nem se achar, e pelo dia-a-dia e um dia depois do outro, isto depois daquilo. e as costuras da solidão viradas para dentro e as roupas bem postas. e se acaso ficaram as costuras do lado de fora, então dirão - e havemos de concordar -  foi um lapso.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Parto com dor

- No Fedro, Platão relacionou o trabalho do filósofo com o trabalho das parteiras. Ajudar a ideia a nascer, ajudar uma criança a nascer... a arte do parto é crucial do ponto de vista filosófico. A ideia pode morrer se não houver um parto cuidadoso, como o bebé.
- Parto sem dor? ou...
- Sim. quer dizer, não, não. com dor, ou pelo menos sem epidural ou anestesias artificiais. A dor, essa dor, do parto, é preciso senti-la, senão não é um parto, é outra coisa. Pode ser o nascimento de uma criança, e há as cesarianas, claro, mas, conceptualmente já não é um parto. E esse amor, esse amor que acontece mesmo quando a mulher está a parir, quando dela sai outra coisa, outra coisa, estranha, que não é ela - na verdade, biologicamente, a própria gravidez é uma monstruosidade. ter um ser estranho dentro de nós e não lutar contra isso...- é de uma bravia incrível e é de loucos, porque é uma coisa muito bárbara que está como que domada, não por nós, ou não unicamente por nós, mas por um gesto da natureza, da natureza com maiúscula, que doma uma monstruosidade. É um acto de amor, que tem de doer.
-  Porquê?
- A dor tem a ver com esse corpo monstruoso, mutante, extraordinário, que é produzido na gestação e no parto. A experiência em si dói e depois fica a memória dessa experiência, ou o que resta dela, os detritos.
Talvez haja na experiência amorosa uma sobra sem fim dos detritos duma experiência de parto. Esse constante arrancar-se a si mesmo um outro que se agarra, que se confunde connosco, mas que sabemos que tem de viver fora, irredutivelmente, apesar de o sentirmos numa confusão connosco. E quando a experiência não é adversa, quando se quer viver a estranheza, quando não se quer apagar a estranheza, isso é uma experiência amorosa. Nela parece haver sempre uma enorme folga, um aberto de tal forma escancarado - que vem dessa estranheza -  que não dá para aguentar sozinho porque a dor dilacera tudo. Talvez juntos a dor se transforme, quando se funde com uma certa promessa de vida, apesar da loucura por causa do impossível voltar-se atrás. Talvez o amor, louco, venha de aguentar essa dor que não passa, mas que já não é a mesma dor, porque já não é só minha, nem tua. Talvez o amor venha de querer viver a dor, como no parto. A dor da abertura.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Andar à procura daquilo que se está a dizer


Estamos confusos. Um dos sinais originários da nossa confusão é preocuparmo-nos com as palavras, quando subitamente descobrimos que não percebemos do que é que estamos a falar. Esforçamo-nos então por encontrar meios e modos para determinar isso de que estamos a falar sem saber (arte, obra de arte, valor, bem, mal, água, longe), isso de que falamos sem cessar, o que mostra, em primeiro lugar, que podemos falar daquilo que não sabemos e, em segundo lugar, que constantemente falamos daquilo que não sabemos, para acabar por descobrir que nós só falamos assim ou que falar implica essa experiência, porque a palavra é sempre uma palavra partilhada, recebida, herdada, com a qual, de cada vez, qualquer que seja o modo por que se faça , nos temos de comprometer. Ora, isto testemunha o gesto originário inerente à linguagem humana: andar à procura daquilo que se está a dizer; quer dizer, na sua forma mais autêntica aquilo de que falamos e não sabemos (sem o saber ainda ou já sem saber) pode vir a tornar-se em qualquer coisa de que andamos à procura, a matéria de um inquérito em que as nossas palavras se convertem e nós com elas. O nosso ponto de partida é já sempre o caos - sustentado e definido por essa coisa tão frágil, por esse assento tão ténue, que é querer dizer qualquer coisa a alguém e a nós próprios -, sempre o caos, a indeterminação, impressões dispersas, esquecimentos e repetições, muitas vozes gritando ao mesmo tempo, tudo bem caldeado pelos demónios da historização: ao nosso dispor todos os arquivos, todas as enciclopédias, todos os bancos de dados, todas as definições. Trata-se de consumir imediatamente o momento presente no momento que há de vir, perder, perder, sempre o momento, dissipando-o em múltiplos domínios isolados, que se combatem reciprocamente numa fúria de autojustificação. É a esta atmosfera que Hermann Broch chama o elemento trágico da nossa época.

Maria Filomena Molder,  O Absoluto que pertence à terra, Edições Vendaval, 2006, p. 14

Um peixe

 

Não é que não tenha sido sempre um pouco friorenta, mas agora preciso de me adaptar à temperatura da água tão devagar que toda a experiência de entrar no mar é uma experiência quase nova. Primeiro os pés, um arrepio que atravessa o corpo como um vento, ficar ali a sentir as correntes mais quentes e as mais frias, os seus cruzamentos, observar as tonalidades de verdes, azuis, areias, as texturas, das pedras, da pele. Irei a nado até à corda que delimita a zona de banhos. Aproxima-se de mim um peixe comprido. Dirijo-me para ele, um passo para a frente e dois para trás, gostava de lhe tocar. Ele foge, rodopia, mas volta a mim. Ficamos neste jogo durante vários minutos. Apetece-me tê-lo mais perto, mergulhar, vê-lo melhor. Começo a pensar no seu sabor de peixe, a imaginá-lo num prato, sei mais sobre ele do que ele sobre mim. A um nível íntimo,  talvez, o da sua carne. É injusto, parece-me, isto de eu saber algo mais sobre o seu interior. Imagino-o sentado numa cadeira, vestido, de garfo e faca na mão, com um corpo humano no prato, talvez o meu. Vêm mais dois peixes aparentemente simpáticos, como aquele, mas mais pequenos. Mergulho, tento vê-los melhor, mas o mar turva-me a vista - não é o meu meio - e a imagem do peixe sentado à frente do prato permanece.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

as ondas perdiam devagar mas decididamente a sua força ao bater na rocha onde se escava a piscina.  a maré descia. observava, como é hábito, a sublime repetição e diferença do mar. um collie preto e branco, saltou  para o lado das rochas, passando à minha frente, mas logo de seguida voltou para perto do seu dono, que não podia saltar para ali com aquela leveza, seguido-o com um  ar terno e dedicado. a sua expressão era de expectativa e preocupação, como se visse muito mais do que eu, que observava à distância.  um olhar esperto, atento aos menores movimentos do homem que se movia calmamente ao mesmo tempo que falava com o cão de um modo muito tranquilo e próximo. aquele cão e aquele homem estavam juntos, pensei, dialogavam, criavam uma atmosfera especial os dois. em baixo, na praia, na orla da piscina, um grupo de crianças brincavam, meio juntas, meio separadas, como costumam fazer as crianças. um garoto de uns oito anos, duas meninas de uns cinco, um bebé com uns dois anos, que ia descendo a pequena colina de areia e que era rebocado para cima, de tempos em tempos, pela mãe, para ficar mais ou menos no mesmo lugar e não começar a rebolar por ali abaixo. o collie desceu para junto das crianças, como se fosse ali o seu lugar e as crianças integraram-no de imediato. procurei observar algum elemento dessa integração, de alguma estranheza, mas nada, era como se estivessem a brincar há tempo indeterminado. faziam um jogo, o collie punha-se agachado, com o focinho entre as patas, imóvel e doce. a criança de oito anos fitava-o, também imóvel, durante ainda alguns segundos, depois voltava ao movimento, corria para a água, brincava com a menina pequena. o collie seguia-o até à água da piscina mas voltava logo de seguida, como se o conduzisse. voltava a agachar-se perante a criança, que tornava a fitar o cão, imóvel. entretanto as meninas corriam de um lado  para o outro, a mãe repetia  mais uma vez o gesto de rebocar o bebé para a zona plana da areia. as meninas pequenas brincavam criando com o seu movimento uma espécie de desenho circular, uma dentro de água e e a outra fora, mas com uma sucessão de gestos que pareciam geometricamente contrapor-se uma à outra, uma entrando ocasionalmente em relação com o bebé, fora da àgua, a outra entrando de vez em quando em relação com a criança de oito anos, quando ela entrava na água. o collie e o garoto repetiram seguramente mais de dez vezes o seu jogo, até que o dono se afastou, o cão o seguiu e a minha atenção por sua vez seguiu o collie, até o ver desaparecer na curva das escadas. uma coreografia perfeita. de quem?
alguma coisa forte ficava, ficou, fica, depois deste episódio vivido. uma intensidade que parece ter a ver com o movimento daqueles gestos entre as crianças e o cão, cuja repetição ao mesmo tempo síncrona e assíncrona, envolvia, envolveu, envolve uma sensação contemplativa, um pensamento vivo, uma intensidade, um ritmo.


sábado, 15 de julho de 2017

gritos e cantos



Todos sabem que, nos pássaros, se distinguem os gritos e os cantos. O grito de alarme, por exemplo, não é um canto, os ornitólogos teriam muito a ensinar-nos se conseguissem dar-nos distinções claras entre o canto e o grito. Mas posso dizer que, também na filosofia, há discursos e os discursos não são a mesma coisa que os gritos, os discursos são o canto dos filósofos. A sua maneira de cantar. E há também gritos filosóficos. Arriscamo-nos a passar ao lado deles, a partir do momento em que se faz da filosofia uma coisa morta. Assimilamo-la ao discurso que ela desenvolve e um grito filosófico pode sempre ser traduzido em termos de discurso.  Mas eis que há alguma coisa que resiste e que, se temos o menor gosto pela filosofia, sabemos que são gritos e que neles a filosofia encontra os pontos do seu nascimento, da sua vida.

E o que são? Pois à primeira vista arriscamo-nos a confundi-los com simples proposições que fazem parte do discurso, mas não, não, não, trata-se de outra coisa... então a que reenviam eles? e porque é que eles são fundados, não fundados, arbitrários? O que é que faz com que um filósofo lance um grito filosófico?  Dizia que os gritos de alarme dos pássaros não são cantos, mas pelo menos sabemos porque é que lançam um grito de alarme, e há outros gritos, para além dos gritos de alarme, gritos de amor, que não são a mesma coisa que os cantos nupciais. Assim, se o filósofo é alguém que, à sua maneira, grita, o que há para gritar? Procuremos exemplos.

Leio Aristóteles e vejo um discurso admirável que é o canto de Aristóteles e reconheço esse canto, uma maneira e cantar que não tem equivalente, não confundo o canto de Aristóteles com o canto de Platão.  Depois, eis que de repente, ao ouvir Aristóteles, vou de encontro à fórmula "É preciso parar".  Ah, se se estabelecesse uma verdadeira análise das proposições... quando Aristóteles nos diz o que é uma substância ele desenvolve-o num discurso-canto. Quando ele nos diz "é preciso parar", já não se trata de uma proposição da mesma natureza, "é preciso parar", é um grito. O que é que isto quer dizer? Quer dizer: não se volta atrás, mas aqui, é curioso, trata-se de um tipo de proposições que, mesmo escritas, não podem exprimir-se senão sob a forma da interpelação. Não é preciso dizê-lo explicitamente.  Ele diz-nos "vocês não podem remontar ao infinito de um conceito por um conceito mais geral", "é preciso parar", ou seja, há conceitos últimos.

Eu cá não sei se há conceitos últimos ou não, nem vocês... Mas isto é vos dito por alguém e só pode ser dito sob a forma de um grito:

é preciso parar, subentenda-se, é preciso que o pensamento pare, nalguma parte, que alcance esse ponto a partir do qual não pode ir mais além.

Não digo é certo ou é errado, é uma questão de sentimento, não estou a tentar convencer-vos de nada, mas tenho a sensação de que isto já não faz parte do discurso filosófico, é um grito filosófico.  Se lhe perguntarmos e porquê, porque é que é preciso parar? A questão não se coloca, sequer. Pois ali, alcançámos um ponto onde a filosofia já não tem de dar as suas razões. A que se dirige, então? Talvez ao que há de mais importante naquilo que é dado, o oculto da filosofia.

  
Gilles Deleuze, aula 67, Cinéma et Pensée, de 30/10/1984 - 2





terça-feira, 4 de julho de 2017

disse-lhe


disse-lhe: deixa-me com as coisas fundadas no silêncio, parafraseando um verso da sophia. repetia as palavras, com o olhar cheio de uma espécie de querer intrínseco, um querer sem objecto. deixa-me, não porque sobre aquilo de que não se pode falar se deva ficar em silêncio, mas só por querer, sem porquê. querer o grito desprovido do som, a abertura informe, oculta. que palavras? não, não quero as palavras para concertar as coisas que estão a precisar de concerto, nem para descrever a fatalidade da existência. estou farta da caixa de ferramentas sempre à mão e pronta para mais um arranjo.
disse-lhe: façamos o nosso discurso cantado, o nosso canto habitual, enquanto formos capazes. cantas tu o teu canto e eu tentarei responder com o meu, no mesmo tom, de manhã bem cedo, que já nos tropeços pelos vestígios da penumbra da noite se fazem sentir as palavras do nosso cantar sincronizado. mas logo que venha a oportunidade fujo. do canto, da toca, da rima e da tonalidade. há de haver um erro, uma falha, engasgo-me, já sabes, e lá se vai a cantiga, perco as chaves da casa, as horas, hei de esquecer alguma coisa crucial, algum nome que estará na ponta da língua (e passava-lhe pela cabeça o terror de que fossem os seus próprios nomes próprios), instaurando mais uma inevitável (pequena?) ruptura. sim, vejo a desilusão a crescer-te nas pequeninas rugas que torneiam os teus olhos, vejo a profunda incompreensão que se segue às minhas fugas ganhar rosto. dirás que servem apenas uma vontade adolescente de trilhar por trilhar, falarás do autómato espiritual. disse-lhe: deixa-me com essas coisas que não se cantam, com as coisas que só se podem dizer gritando, num grito qualquer infinitivo e impessoal. 
havia de correr pela rua abaixo e a rua desceria tanto que não seria já eu a descê-la mas seria como se a rua corresse sozinha. e quando a descesse até ao fim, tu estarias lá, na paragem do autocarro, no café, ou em qualquer outro lugar, com os teus passos, e então eu esquecia-me da casa e embrenhava-me pela noite dentro, a visão cada vez mais animal, atenta a luzes nunca antes vislumbradas e a outras cores, o cheiro aguçado, de vez em quando talvez me desse conta de que cantava, baixinho, como contraponto ao instinto cada vez mais próximo dos cães e dos gatos que por ali vadiavam, como eu. cada esquina e cada ruela eram alternativas, outros mundos, outras maneiras de ver. sentia-me segura, suspensa pela amplitude crescente, a penumbra ampliava o campo de visão, abria o espaço, dentro e fora de mim e a brisa levava-me com ela e quando o vento era mais forte era eu mais forte e quando era quente eu era quente. e então via-te de novo, passeavas com esses teus passos do costume e eu havia de me aproximar de ti e dos teus passos, do seu ritmo que me tomaria outra vez. sempre os mesmos passos. 
e disse-lhe: que procuras na repetição dos mesmos passos? evitar a queda? ou viver na ilusão de que conhecerás isso que te fará tropeçar e cair?




terça-feira, 13 de junho de 2017

A cómoda de Aquarius


    







A cómoda de "Aquarius", de Kleber Mendonça Filho, a cómoda de Clara, não é de Clara. É Clara que é da cómoda. A cómoda é uma experiência, um desejo, um gesto, que atravessa a vida de Clara, mas também da tia Lúcia. Atravessa-a como um vento, um mar, uma chuva, algo da ordem da natureza que necessariamente nos ultrapassa, algo que não podemos possuir, mas que nos possui a nós. É uma experiência, um desejo, um gesto que atravessa uma vida. Não se trata de um pequeno jogo metonímico, de uma imagem que não é o que parece ser. Também é isso, o erótico por detrás do pornográfico, o obtuso por detrás do óbvio, para chamar aqui conceitos de Roland Barthes. Trata-se de uma forma - mas uma forma de força - de conectar camadas de sentido. A cómoda é, neste filme, um conector afectivo, um signo que conecta coisas. Costumo dizer, quando falo de conectar, a partir do conceito deleuziano de "connectivité", que não dá, como muitas vezes vejo fazer, para traduzir conectar por ligar ou associar. Ligar ainda vá. Mas associar não. Não se trata de associar nada. Conectar está ligado a uma coisa energética, como conectar uma tomada a uma saída de electricidade, como conectar dois pólos de energia. Haver conexão é haver passagem de energia entre objectos, pessoas, coisas. Ou conecta ou não conecta. E há padrões que conectam movimentos vitais de seres completamente heterogéneos, como nos disse Gregory Bateson.... Não são ligações mentais, não são conceitos racionais, não são lembranças. São conexões afectivas, energéticas. São conexões de desejo. A cómoda, neste filme, é um conector deste tipo. Como a madalena de Proust, que também não é simplesmente um signo rememorativo, mas sobretudo um signo que tem a potência de conectar coisas e de fazer passar o desejo, tem a potência de criar uma passagem, ligando certas coisas em particular e não outras. Esta cómoda percorre todo o filme. Como memória, como presente, actual, como fantasma, face ao medo da morte. Mas sobretudo como desejo, um desejo que está longe de se limitar ao desejo sexual, mas que é puro desejo, de resistir, de vida e de revolta. Muita coisa se podia dizer ainda sobre esta cómoda...

sexta-feira, 9 de junho de 2017

um outro mundo/ un autre monde

Os meus olhos, que à primeira vista pareciam normais, tornaram-se estranhamente opacos, adquiriram uma aparência de córnea, como os élitros de alguns coleópteros. O médico pressagiou que eu perdia a vista, confessando, contudo, que o mal lhe parecia absolutamente bizarro (...). Rapidamente a pupila começou a confundir-se de tal forma com a íris que já não era possível discernir uma da outra (...) Observou-se que eu conseguia olhar para o sol sem ficar incomodado. A verdade é que eu não estava nada cego e via muito adequadamente. Alcancei assim a idade dos três anos. Era (...) um pequeno monstro. (...) Tornei-me cada vez mais estranho (...). Aos seis anos alimentava-me quase exclusivamente de álcool, crescia prodigiosamente rápido, era incrivelmente magro e leve. Digo leve, do ponto de vista específico, que é precisamente o contrário dos magros: assim, nadava sem o menor esforço, flutuava como uma placa de álamo, a minha cabeça não afundava mais que o meu corpo. Era lesto de forma proporcional ao peso. Corria com a velocidade de um cervo, percorria facilmente valas e obstáculos que nenhum homem sequer tentava atravessar. Num piscar de olhos alcançava o topo de uma faia ou, ainda mais surpreendente, saltava para o telhado da nossa casa. Porém, o menor fardo era-me excessivo.

Mes yeux, qui tout d’abord avaient paru normaux, devinrent étrangement opaques, prirent une apparence cornée, comme les élytres de certains coléoptères. Le docteur en augura que je perdais la vue ; il avoua toutefois que le mal lui semblait absolument bizarre et tel qu’il ne lui avait jamais été donné d’en étudier de semblable. Bientôt la pupille se confondit tellement avec l’iris, qu’il était impossible de les discerner l’un de l’autre. On remarqua, en outre, que je pouvais regarder le soleil sans en paraître incommodé. À la vérité, je n’étais nullement aveugle, et même il fallut par avouer que j’y voyais fort convenablement. J’arrivai ainsi à l’âge de trois ans. J’étais alors, selon l’opinion de notre voisinage, un petit monstre. La couleur violette de mon teint avait peu varié ; mes yeux étaient complètement opaques. Je parlais mal et avec une rapidité incroyable. J’étais adroit de mes mains et bien conformé pour tous les mouvements qui demandent plus de prestesse que de force. On ne niait pas que j’eusse été gracieux et joli, si j’avais eu le teint naturel et les prunelles transparentes. Je montrais de l’intelligence, mais avec des lacunes que mon entourage n’approfondit pas; d’autant que, sauf ma mère et la Frisonne, on ne m’aimait guère. J’étais pour les étrangers un objet de curiosité, et pour mon père une mortification continuelle. Si, d’ailleurs, celui-ci avait conservé quelque espoir de me voir redevenir pareil aux autres hommes, le temps se chargea de le dissuader. Je devins de plus en plus étrange, par mes goûts, par mes habitudes, par mes qualités. À six ans, je me nourrissais presque uniquement d’alcool. À peine si je prenais quelques bouchées de légumes et de fruits. Je grandissais prodigieusement vite, j’étais incroyablement maigre et léger. J’entends léger même au point de vue spécifique – ce qui est justement le contraire des maigres : ainsi, je nageais sans la moindre peine, je ottais comme une planche de peuplier. Ma tête n’enfonçait guère plus que le reste de mon corps. J’étais leste en proportion de cette légèreté. Je courais avec la rapidité d’un chevreuil, je franchissais facilement des fossés et des obstacles que nul homme n’eût seulement essayé de franchir. En un clin d’oeil, j’atteignais la cime d’un hêtre ; ou, ce qui surprenait encore plus, je sautais sur le toit de notre ferme. En revanche, le moindre fardeau m’excédait.  
Un Autre Monde [1895]. J.H. Rosny Aîné.
(9/06/2017)

quarta-feira, 7 de junho de 2017

impertinent orphans

As an orphan one learns to be self-sufficient and one learns the tricks of the trades which go with that. One becomes a freelance. 
As a freelance, from the age of four or five onwards, I treated all those I encountered as if they too were orphans like me. And I believe I still do this.
I propose a conspiracy of orphans. We exchange winks. We reject hierarchies. All hierarchies. We take the shit of the world for granted and we exchange stories about how we nevertheless get by. We are impertinent. More than half the stars in the universe are orphan-stars belonging to no constellation. And they give off more light than all the constellation stars.
Yes we are impertinent. And I guess that I approach and chat up readers in the same way. As if you too were orphans.

John Berger. Confabulations.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

dédoublements

  Je me suis toujours proposé d’expliquer de quelle façon j’avais écrit certains de mes livres (Impressions d’Afrique, Locus Solus, l’Étoile au Front et la Poussière de Soleils).
  Il s’agit d’un procédé très spécial. Et, ce procédé, il me semble qu’il est de mon devoir de le révéler, car j’ai l’impression que des écrivains de l’avenir pourraient peut-être l’exploiter avec fruit.
  Très jeune j’écrivais déja des contes de quelques pages en employant ce procédé.
  Je choisissais deux mots presque semblables (faisant penser aux métagrammes). Par exemple billard et pillard. Puis j’y ajoutais des mots pareils mais pris dans deux sens différents, et j’obtenais ainsi deux phrases presque identiques. En ce qui concerne billard et pillard les deux phrases que j’obtins furent celles-ci :
1° Les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard…
2° Les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard.
Dans la première, « lettres » était pris dans le sens de « signes typographiques », « blanc » dans le sens de « cube de craie » et « bandes » dans le sens de « bordures ».
Dans la seconde, « lettres » était pris dans le sens de « missives », « blanc » dans le sens d’ « homme blanc » et « bandes » dans le sens de « hordes guerrières ».
Les deux phrases trouvées, il s’agissait d’écrire un conte pouvant commencer par la première et finir par la seconde.
Or c’était dans la résolution de ce problème que je puisais tous mes matériaux.
(...)
Raymond Roussel, Comment J'ai écrit certains de mes livres (1935), Gallimard, 1995, Incipit


*








Foucault, M., Raymond Roussel, Gallimard, 1963, pp. 17 & 20

*
Comment s'expliquer le "procédé"? Selon Michel Foucault, il existe dans le langage une sorte de distance essentielle, de déplacement, de dislocation ou d'accroc. C'est que les mots sont moins nombreux que les choses et que chaque mot a plusieurs sens. La littérature de l'absurde croyait que le sens manquait; en fait, ce qui manque, ce sont les signes.
Il y a dont un vide qui s'ouvre à l'intérieur d'un mot: la répétition du mot laisse béante la différence de ses sens. Est-ce la preuve d'une impossibilité de la répétition ? Non, et c'est là qu' apparaît la tentative de Roussel: il s'agit d'agrandir ce vide au maximum, de le rendre ainsi déterminable et mesurable, et de le combler déjà par toute une machinerie, par toute une fantasmagorie qui relie et intègre les différences à lá répétition. 
(...)
Roussel élabore de multiples séries de répétitions qui libèrent: les prisonniers sauveront leur vie par la répétition et la récitation, dans l'invention de machines correspondantes.

Deleuze, G., "Raymond Roussel ou L'horreur du vide", L'Île déserte et d'autres textes, Minuit, 2002, p. 103

segunda-feira, 29 de maio de 2017

nas ruas


entretanto, é tão largo o tempo entre não sei o quê, essas acções que se passa a vida toda a fazer, os dias, entre os pequenos gestos, um passo e outro passo. entretanto o tempo passa, já passou, vai passar. é largo mas não tanto. e ainda assim, continua essa absurda e vaga expectativa. perder-se nas ruas, ter prazer nisso, apesar de ou precisamente por haver tantos elementos confusos. tantas vezes trocar olhares com quem passa mas sem ter de esmiuçar os inúmeros detalhes dessas trocas. nas ruas não há nada e está ainda tudo por fazer. ninguém quer saber das dores, se é aqui ou ali. nem dos projectos longos. importam os deslocamentos, a sombra e o sol. a sede, a fome e uma série de cartografias, energéticas talvez, dos cantos, das esquinas, dos becos, das entradas, saídas, das casas, sim as casas e as portas, janelas, abertas e fechadas. sentidos proibidos, subidas e descidas, ruas vazias, ruas cheias. gente em pé, gente sentada. buzinas. burburinho. chuva, vento, obras. chamamentos. nas ruas treinamos a nossa consciência das margens, mais ou menos aquilo a que um filósofo americano chamou fringe consciousness em que se experimenta uma espécie de atenção ao mesmo tempo vazia mas extremamente activa. vazio pleno. há gente que passa, como um vento, e há gente à espera de qualquer coisa, mas a espera que constitui as ruas é uma espera sem coisas, esvaziada do quê. encontram-se quase sempre nas ruas perspectivas risonhas, mas quando a perspectiva é escura é fácil ser tenebrosa, o abismo tão perto. escolho um atalho, encosto-me num balcão de um café, deixo o resto para depois, enquanto mexo o café só para contemplar os desenhos das espécies de nuvens que nele se formam e confirmo que nas ruas não é a cronologia que reina, que é tudo o que escapa à cronologia que é do seu domínio e que há um saber profundo de quem se perde pelas ruas: o de que tudo, inevitavelmente, será feito no último momento, esse momento que, tal como as ruas, não advém de nenhuma espera. talvez seja o que nos vale.

sábado, 20 de maio de 2017

o difícil de dizer

  Aprendermos a perder-nos na cidade, exactamente: ouvir os nomes das ruas como os estalidos dos ramos secos, como gargantas de montanha que pautam as horas do dia. Benjamin fala sobre isso com uma escrita anómala, uma escrita em vórtice que procura chegar ao difícil de dizer, àquilo que está no fundo e mal se vê. Quando é que a cidade se torna cidade da perdição? Onde tem origem o labirinto, quando nos adestramos para a arte de nos perdermos? "Tarde" (...).

  É bela, esta velocidade vertiginosa da escrita, este recuar até às marcas da tinta nos mata-borrões da infância em poucas linhas, à procura do labirinto primordial. (...)

 Quem escreve histórias sabe que as razões poéticas não são falenas de asas transparentes. Têm carne e sangue, paixões, sentimentos complexos: poesia é apalparmos o ventre com movimentos nunca previsíveis.  (...)

  Nos mitos há sempre qualquer coisa que nos toca cá dentro. (...)

  O que é preciso é aprender a falar com orgulho da nossa complexidade, de como ela molda a nossa vida social, no amor e na cólera. Para fazê-lo é preciso aprender a arte de nos perdermos no penoso e no intricado, não há Ariadne que não cultive em qualquer parte um amor molesto, a imagem de uma mãe muito amada que, no entanto, põe no mundo bonecas suicidas e minotauros. 

  Ouvirmo-nos, vermo-nos. Nos labirintos metropolitanos por vezes pedimos destemidamente sepultura para o irmão, às vezes colaboramos na morte do meio-irmão para fugirmos com o seu assassino, em certos casos matamos os próprios filhos, e as mais das vezes pronunciamos maldições terríveis antes de sermos nós a cair, vítimas das Fúrias.

Elena Ferrante, "Escombros", Relógio D´Água, pp. 133-141




quinta-feira, 18 de maio de 2017

manhã

não há agora a praia, de preferência deserta, para gritar e às vezes um suspiro não chega. escreve-se qualquer coisa o mais rapidamente possível e sem cortes. o acordar é estranho, tudo a rodar mal ponho o pé no chão, pelo que a primeira coisa a fazer é mesmo o café. depois acordar as duas miúdas da casa, a loura e a morena, mas já com a roupa ali à frente dos olhos para pouparem os dez minutos do costume com o argumento de que não sabem o que vestir. gosto de as chamar devagar, uma a uma, com beijos e falas doces à mistura, que o acordar é uma coisa tremenda. é a parte mais deliciosa da manhã, esse momento em que se fala baixinho e em que ainda cheiramos todos a noite, sonhos e preguiça. logo a seguir tento entrar tanto quanto me é possível no modo máquina, com um programa definido: pôr comida na mesa. a fruta primeiro, se não não comem fruta, depois o resto, pão, mel. enquanto comem ir tomar duche, rápido, voltar para ver se está tudo ok, mas uma já se besuntou toda de mel e tem de mudar a t-shirt, respiro fundo. mas qual é que eu visto? não sei qual é que fica bem! uma qualquer, uma qualquer (começo a usar um tom mais alto). entretanto preciso do tal café, tenho de comer alguma coisa antes, ainda de toalha no corpo, demoro demasiado com o café, que era só para engolir, não para saborear. porque é que estou a sentir o pé todo molhado, será que não me limpei bem? ah entornou-se o leite no chão, eu limpo eu limpo, sim? mas não, querida, deixa lá, não limpes (é melhor não), depois trato disso. estamos atrasadas, tenho de me vestir, esqueço o café, tenho de preparar as lancheiras, não, elas já cresceram, as miúdas (e não reparei), está tudo aqui, pronto, é só pôr nas lancheiras, sim? preparo-me para sair de casa. pinto os lábios sem espelho, não preciso de espelho. calcem-se e penteiem-se vá lá, vá lá, é já (eu já disse isto dez vezes) quantas vezes mais tenho de repetir, e entretanto a morena decide ir limpar os ténis como me viu fazer antes, com um algodão húmido, oh que bom, penso cá para mim meia nostálgica, já faz aquilo sozinha, mas depois sinto um cheiro estranho na casa de banho, ao mesmo tempo que reparo que o tecto rachou mais uma vez e está a pingar água. não, não, por favor não me digas que usaste acetona para limpar os ténis? pois, sim. todos estragados. bora, vamos sair. agora! mas ainda não mudei de t-shirt. paciência, é agora! o carro? onde está o carro? oh não, está a milhas, por causa das obras. apanhamos um táxi, senão faltam à ginástica e eu à reunião. táxi! mãe, tens batom nos dentes. entramos no carro, bom dia. é uma senhora taxista, simpática qb. limpo os dentes com o dedo, já está bem? reparo que me esqueci do telemóvel, ainda tenho de o ir buscar a casa (perfeito), a paisagem de areia, gruas coloridas de várias dimensões e o som das máquinas dura o caminho todo. aquela paisagem estranha por vezes é agradável. chegamos à escola. beijos, bom dia. fecho a porta da escola. sigo a pé. dia de sol em lisboa e o rio muito azul ao fundo. seguem-se aqueles instantes em que não penso em nada, ou, o que parece ir dar ao mesmo, em que o pensamento se deixa impregnar de tudo, freneticamente e em simultâneo, numa torrente de cruzamentos e choques, derivações, encontros e fugas sem fim. volto a mim. tenho de saber as horas. sigo por uma rua não muito longe daquela que todos os dias costumo seguir, muito perto até, seguramente, pois pelas suas brechas e travessas consigo ver todos os meus caminhos costumeiros. encontro um velho a quem pergunto as horas. responde-me contrafeito que não é essa a pergunta, com certeza, e põe-se diante de mim, assim como quem espera a pergunta certa. olho com atenção para mim, para as minhas mãos e para a roupa que trago vestida, a ver se as reconheço. depois olho para o velho, procuro reformular a questão, mas só me sai um: queria saber as horas, por acaso sabe? é que não tenho horas. e acha que eu tenho disso? diz-me o velho. não, não, deixe lá. apetecia-me sorrir-lhe mas continuo em frente. sei o suficiente sobre as horas para acelerar o passo, mas a rua parece nunca mais acabar e pelas ruelas e brechas que a atravessam lá vou eu vislumbrando de raspão todos esses trajectos feitos outras tantas vezes, e os tempos todos sobrepostos, naquela rua.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Ce n'est que par soudaines explosions que la conscience souterraine, réussissant à forer l'écorce des jours, jaillit comme un jet brûlant de puits artésien, - pour quelques secondes seulement -, de nouveau disparue et sucée par les lèvres de la terre. 

Apenas por súbitas explosões a consciência subterrânea, conseguindo perfurar a casca dos dias, jorra como um jacto ardente de um poço artesiano, - apenas por alguns segundos - voltando a desaparecer, sugada pelos lábios da terra.


Romain Rolland, Le Voyage intérieur: Songe d'une vie

Éditions Albin Michel, Paris. 

sexta-feira, 12 de maio de 2017

jogos


todos teremos talvez experimentado, em crianças, essa fase em que queremos saber quanto tempo aguentamos sem respirar. cronometramos e experimentamos suspender a respiração até não aguentarmos mais: debaixo de água ou de uma almofada. é um pôr-se à prova, um exercício de aproximação a essa estranha imobilidade, uma espécie de jogo de suspensão da vida. talvez fosse um pouco o mesmo que procurávamos, eu e o meu irmão, quando nos fingíamos de mortos. não só para assustar os adultos, mas para pôr à prova quanto tempo aguentávamos parar os movimentos da caixa torácica e os minúsculos movimentos do corpo, do rosto, apreendendo também, aos poucos, qualquer coisa essencial, sobre o sentido voluntário e involuntário das nossas acções e decisões corporais. e se numa esquina qualquer, a meio dum percurso quotidiano, um espaço enquadrado de maneira aparentemente arbitrária nos aparecer com tantas perspectivas diferentes que se torne impossível ver, produzindo-se um descentramento tal que a escolha se torne inviável, imponderável, inescrutável? produz-se uma suspensão do sentido das coisas, uma imobilidade, e voltamos a essa espécie de jogo originário da infância. uma síncope, uma pequena morte em vida. e outra vez esse jogo: quanto tempo aguentas nem morto nem vivo? a decisão acabará fatalmente por vir, tão natural quanto desesperadamente, como o sopro de ar que se inspira quando não se pode mais sem respirar.  inúmeras são as vezes em que não há escolha, mas antes minúsculas decisões involuntárias, advindas de jogos deste tipo. qual a margem, o limite, entre a escolha e a decisão? acender ou não o cigarro, atravessar ou não com o sinal vermelho, calçar ou não estas meias, aceitar ou não um lapso de linguagem que pode determinar como se vive. há qualquer coisa simultaneamente anódina e dramática nestas pequeninas decisões: a certeza inconfessável de que não são mensuráveis. quero os dois livros que folheio na livraria. só posso levar um, mas quero os dois. levo este. não necessariamente porque me interesse mais. por vezes a dimensão, o material, a relação táctil entre o livro e a minha mão, qualquer outra coisa alheia ao livro em si. dos dois indivíduos a quem me posso dirigir para o comprar, dirijo-me a um e não ao outro que até estava mais próximo de mim, terá sido aquele seu minúsculo gesto facial com o sobrolho direito, terá ele captado a minha atenção? que estranha atenção esta que nos habita, uma atenção esburacada, que ao mesmo tempo nos agarra e faz cair. 

um sonho de outubro

Um sonho de Outubro passado. Num bar que conheço bem, plantado em cima de uma praia, em parte seria o Sargo, na Parede, mas com uma escadaria muito mais alta. Tinha várias camadas, varanda e terraço. E também cave. Quando abro a pequena porta para a cave, à direita, encontro uma pequenina divisão com livros, mesinhas pequenas e fauteiuilles anos 20. Há caderninhos de notas de todas as formas, cores. Reconheço alguns como meus, outros não. Sigo em frente, o corredor é feito de areia e pedra e, novamente à direita, há uma arcada feita de rocha que vai dar directamente ao mar. Vou molhar os pés. A maré está vazia mas pode subir de repente e aquela cave está fechada. Então é aqui que vou morrer, penso. Volto à pequena divisão dos livros, trago comigo dois caderninhos, um maior e um mais pequeno. Abro a pequena porta e saio da cave. Vou tomar café ao terraço, que é mais alto.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

chuva

e veio a chuva, muita chuva, inesperadamente, apesar da nuvem negra e pesada a norte o indicar. e eu que já não esperava nada de novo por hoje e nem nos próximos dias. se os dias se repetem indefinidamente iguais, desconfio que não seja vida. mas ela surpreende, assim, na mais singela gota de chuva, e vem outra vez esse hábito um pouco terrível de uma muito vaga esperança. também nos sonhos me visita o inesperado, por mais recorrentes eles que sejam, como o de voar - ou será melhor dizer pairar - por cima dos lugares, com todas as suas variações, desde o sonho em que há a minha decisão de voar, que efectuo por vontade, de fugir ou de outra coisa qualquer que agora não sei identificar, até à gradual constatação de que estou a ficar mais leve e começo a pairar e depois a subir a subir, de braços abertos como que para me equilibrar, e a ver tudo de cima, à distância e sem enquadramento possível, sem contornos ou com contornos sempre móveis. por vezes já não voo há tanto tempo que o medo de não o conseguir fazer me toma, como quando deixo de andar de bicicleta durante tanto tempo e temo já não saber como. mas, tal como se diz que nunca nos esquecemos como se anda de bicicleta, assim acontece com o voo. e há aquele outro sonho recorrente, o das casas. varia indefinidamente, claro, é feito de muitos sonhos e de muitas casas, umas em que vivi efectivamente e outras que só nos sonhos habitei, mas na maior parte são verdadeiras misturas de umas e outras. dei-me conta, ao mesmo tempo que suspirei de alívio com a torrente de chuva e a força das gotas no vidro do carro e depois no corpo, quando saí para me molhar, que não são só as casas onde vivi que afectam as dos meus sonhos, mas que as casas dos meus sonhos determinam os espaços em que estou. aconteceu, por exemplo ainda há pouco, a escorrer água, entrar num pequeno café onde nunca entrara antes e conhecê-lo tão perfeitamente, de sonhos seguramente, saber exactamente o canto para onde queria ir, sentir-me em casa.