que coisa é essa que distingue o ângulo preciso desenhado pela mesa de mármore da cozinha, o feixe geométrico de luz que, projectado do parapeito da janela com o canteiro de sardinheiras, atravessa o mármore vergado de veias rosa, como vasos sanguíneos da memória, escritos na pedra, e se prolonga até ao chão, reflectindo-se em múltiplas dimensões, vindo desse passado tão próximo como longínquo, atravessando o presente e prolongando-se naturalmente para fora do tempo. que coisa é essa que distingue esta memória do preciso reflexo, do primeiro reflexo, de todos os reflexos juntos, do feixe de luz do parapeito da janela com o canteiro de sardinheiras que atravessou o mármore da mesa da cozinha, na casa da minha avó. os meus cotovelos pousados em cima da mesa. e o frio daquele mármore e o calor do feixe de luz, colados à minha pele. esta pele, agora.
sorriso sem gato
Well! I've often seen a cat without a grin - thought Alice - but a grin without a cat! It's the most curious thing I ever saw in my life!
quarta-feira, 1 de maio de 2024
segunda-feira, 15 de abril de 2024
pensamentos soltos
da interrupção
para brecht, a arte da interrupção permitia a descontextualização, a retirada das coisas dos lugares habituais, abrindo uma brecha para o pensamento poder acontecer, em vez de permanecer adormecido, embalado pela continuidade da acção. claro que a arte da interrupção, quando brecht escreveu e pensou sobre ela, tem todo um contexto, um aparato tecnológico de uma época, que fazia expandir um certo tipo de percepção, com o cinema, a rádio... a interrupção, a possibilidade do corte, montagem e desmontagem, estavam em cima da mesa, mas o paradigma (perceptivo) ainda era o da continuidade. hoje, continuo a achar que a interrupção é algo não só interessante, mas fundamental, poética e politicamente, mas o paradigma da percepção já não é o da continuidade. é como se a própria ideia de continuidade estivesse algo, não direi obsoleta, mas fosse, simplesmente, desconhecida. já não se sabe o que é continuar. pensar sobre isto.
da hora da refeição
há uns tempos encontrei um amiguinho que andou comigo na preparatória. nessa altura não lhe ligava nenhuma. então, anos depois, numa noite em que tomámos um copo, falou-me de uma sua teoria sobre o modo como comemos. que o mais importante era comermos quando tínhamos fome. que essa coisa das refeições era uma invenção castradora e sem sentido, que não havia nada de mais doente do que comer sem vontade. que em sua casa, quando eram pequenos, cada um comia quando tinha fome. e que sua relação com a comida era assim. sentia que era menos um peso na existência, quando olhava para a importância que as pessoas davam às horas da refeição. sentia-se mesmo privilegiado por ter tido uma educação que o poupou deste fardo. na altura, apesar de achar algo sedutora, esta maneira mais animal de conceber o alimento e o acto de comer, fiquei meio perplexa com este grau de liberdade. na minha casa não havia nenhuma ditadura da refeição mas, sempre que estávamos todos em casa, sentávamo-nos juntos para comer. era, de certa forma, um ritual. ultimamente tenho-me lembrado várias vezes desta conversa com o meu amigo.
da língua portuguesa
antes, quando ouvia alguém falar um português inglesado, era uma graça. hoje, quando oiço alguém falar um português não inglesado, é uma graça.
sábado, 9 de março de 2024
o cinema
como aquelas explorações nocturnas, por grutas, sonhos, corredores como passagens sem destino, em que reconhecemos as figuras pelo seu ritmo e não pelos seus traços. são figuras que não pretendem representar nada, mas que contêm, em potência, algo de vivo, que se viveu ou poderá viver. acontece uma misteriosa arrumação destas figuras, instauram-se relações que acontecem por magnetismos insondáveis, entre imagens que não se deixam representar por completo, apenas aos pedaços, pedaços de corpos, mãos, rostos semi-conhecidos, misturados com o desconhecido, espécie de figuração monstruosa do real.
sexta-feira, 8 de março de 2024
abrir para dentro
A atenção ao mundo não vem de dentro. O ensimesmar-se numa mania identitária reside talvez no mal entendido do movimento ser de dentro para fora: olhos que abrem para fora, botões fechados que desabrocham, mãos que se estendem, o corpo que caminha pela estrada afora, a atenção que se activa, despertando de um estado de adormecimento para o mundo que está fora. Regra geral dá-se sempre primazia a um estado anterior interior, a um dentro que se abre, do útero ao mundo. Mas é efectivamente apenas um hábito da razão. Uma imagem a que estamos acostumados. O cinema é naturalmente uma forma privilegiada de romper com essa imagem do dentro-fora, pois nele está-se sempre já no mundo. Fora. O movimento de abertura faz-se de fora para dentro, quer dizer, ao contrário, sem deixar de ser abertura. Num modo especial de ser do aberto, numa imobilização que vem de um adentrar-se desventrando-se.
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024
todos os passos
Convoco todos os passos que dei, todas as árvores que vi e todas as gotas da chuva que senti, todo o chilrear de pássaros que ouvi. Em todos os passos que dei há ainda alguns que não dei. Convoco-os a todos. Estes meus passos que agora dou nesta terra não são estes meus passos que agora dou nesta terra. São os primeiros passos que dei, são os passos que dava caminhando ao lado do ardente desconhecido, são os passos do corpo em queda livre depois da morte trespassar em vida, são os passos alegres e leves, os amorosos, os dedicados, os passos confiantes, da mãe que embala a cria, os passos desconfiados, e os aterrorizados. Estes passos não são estes passos, são todos os passos.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024
contemplações
A rememoração não é uma lembrança. É a suspensão de uma certa compreensão do tempo, o tempo cronológico, que sem que saibamos definir, vamos, desde cedo, gerindo, ou ele a nós. Suspender essa compreensão do tempo tem consequências existenciais profundas. A contemplação é um modo de compreensão do tempo e do espaço que advém dessa suspensão. Passear numa cidade sob influência de uma ou de outra compreensão do tempo é tão diferente como estar doente ou são, adormecido ou desperto para o mundo.