quinta-feira, 18 de maio de 2017

manhã

não há agora a praia, de preferência deserta, para gritar e às vezes um suspiro não chega. escreve-se qualquer coisa o mais rapidamente possível e sem cortes. o acordar é estranho, tudo a rodar mal ponho o pé no chão, pelo que a primeira coisa a fazer é mesmo o café. depois acordar as duas miúdas da casa, a loura e a morena, mas já com a roupa ali à frente dos olhos para pouparem os dez minutos do costume com o argumento de que não sabem o que vestir. gosto de as chamar devagar, uma a uma, com beijos e falas doces à mistura, que o acordar é uma coisa tremenda. é a parte mais deliciosa da manhã, esse momento em que se fala baixinho e em que ainda cheiramos todos a noite, sonhos e preguiça. logo a seguir tento entrar tanto quanto me é possível no modo máquina, com um programa definido: pôr comida na mesa. a fruta primeiro, se não não comem fruta, depois o resto, pão, mel. enquanto comem ir tomar duche, rápido, voltar para ver se está tudo ok, mas uma já se besuntou toda de mel e tem de mudar a t-shirt, respiro fundo. mas qual é que eu visto? não sei qual é que fica bem! uma qualquer, uma qualquer (começo a usar um tom mais alto). entretanto preciso do tal café, tenho de comer alguma coisa antes, ainda de toalha no corpo, demoro demasiado com o café, que era só para engolir, não para saborear. porque é que estou a sentir o pé todo molhado, será que não me limpei bem? ah entornou-se o leite no chão, eu limpo eu limpo, sim? mas não, querida, deixa lá, não limpes (é melhor não), depois trato disso. estamos atrasadas, tenho de me vestir, esqueço o café, tenho de preparar as lancheiras, não, elas já cresceram, as miúdas (e não reparei), está tudo aqui, pronto, é só pôr nas lancheiras, sim? preparo-me para sair de casa. pinto os lábios sem espelho, não preciso de espelho. calcem-se e penteiem-se vá lá, vá lá, é já (eu já disse isto dez vezes) quantas vezes mais tenho de repetir, e entretanto a morena decide ir limpar os ténis como me viu fazer antes, com um algodão húmido, oh que bom, penso cá para mim meia nostálgica, já faz aquilo sozinha, mas depois sinto um cheiro estranho na casa de banho, ao mesmo tempo que reparo que o tecto rachou mais uma vez e está a pingar água. não, não, por favor não me digas que usaste acetona para limpar os ténis? pois, sim. todos estragados. bora, vamos sair. agora! mas ainda não mudei de t-shirt. paciência, é agora! o carro? onde está o carro? oh não, está a milhas, por causa das obras. apanhamos um táxi, senão faltam à ginástica e eu à reunião. táxi! mãe, tens batom nos dentes. entramos no carro, bom dia. é uma senhora taxista, simpática qb. limpo os dentes com o dedo, já está bem? reparo que me esqueci do telemóvel, ainda tenho de o ir buscar a casa (perfeito), a paisagem de areia, gruas coloridas de várias dimensões e o som das máquinas dura o caminho todo. aquela paisagem estranha por vezes é agradável. chegamos à escola. beijos, bom dia. fecho a porta da escola. sigo a pé. dia de sol em lisboa e o rio muito azul ao fundo. seguem-se aqueles instantes em que não penso em nada, ou, o que parece ir dar ao mesmo, em que o pensamento se deixa impregnar de tudo, freneticamente e em simultâneo, numa torrente de cruzamentos e choques, derivações, encontros e fugas sem fim. volto a mim. tenho de saber as horas. sigo por uma rua não muito longe daquela que todos os dias costumo seguir, muito perto até, seguramente, pois pelas suas brechas e travessas consigo ver todos os meus caminhos costumeiros. encontro um velho a quem pergunto as horas. responde-me contrafeito que não é essa a pergunta, com certeza, e põe-se diante de mim, assim como quem espera a pergunta certa. olho com atenção para mim, para as minhas mãos e para a roupa que trago vestida, a ver se as reconheço. depois olho para o velho, procuro reformular a questão, mas só me sai um: queria saber as horas, por acaso sabe? é que não tenho horas. e acha que eu tenho disso? diz-me o velho. não, não, deixe lá. apetecia-me sorrir-lhe mas continuo em frente. sei o suficiente sobre as horas para acelerar o passo, mas a rua parece nunca mais acabar e pelas ruelas e brechas que a atravessam lá vou eu vislumbrando de raspão todos esses trajectos feitos outras tantas vezes, e os tempos todos sobrepostos, naquela rua.

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