domingo, 23 de setembro de 2018

temos de falar do tempo

urgente: constatar (sentir) a lógica de composição (não inteligível) para chegar às coisas, chegar à visão.

(visão) feita de exercícios de composição. aproximações, deslocamentos, contacto. procura do sopro (ritmo).

(ritmo) sopro, ondulação, humidade, frio, calor. chuva. a ocasião como modo temporal. o tempo que faz e se faz sentir (falta-nos a palavra em português, weather, em inglês).

chove realmente. ficamos ensopados. tempo como corpo ensopado. podemos prever (ler os sinais), podemos esperar a chuva, mas não podemos saber absolutamente nem se a chuva vem nem quando e nem determinar as suas causas exactas.

se cai chuva é tudo chuva e nada é chuva. somos tão impermeáveis (são já tantas as invenções, depois da casa...) e no entanto nada escapa à influência subtil da chuva torrencial ou do chuvisco.

e então temos de falar do tempo, do tempo que nos toca, desse tocarmo-nos, eu e tu e nós.
que é como quem diz que temos de dizer, no tempo que ao passar tudo quer engolir, coisas que nada querem dizer senão o dizer que nada diz (só o gesto de dizer).

parece que vai chover, amanhã (não achas?) sim, sim, parece que vai chover  (cá estou. cá estamos) sussurraremos ou gritaremos ao telefone: alô, estás a ouvir-me? temos de falar do tempo, parece que vai chover.

emergência de palavras silenciosas, como malas cheias de um desejo de ocupar um lugar, de tocar um chão, a tua mão. palavras-mão.

temos de falar do tempo (como o vento venta ou como a chuva chove).

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

manhã

dia de semana, nove horas da manhã. desço a avenida de carro, já a conheço bem, é ladeada de umas árvores que a escurecem um pouco, talvez carvalhos. fico sempre maravilhada com as suas folhas em movimento, os raios de luz entre os ramos escuros e os desenhos das sombras na estrada de alcatrão. a avenida seria um pouco sombria, até, não fosse o movimento rotineiro e a força dos contrastes. se os sentidos ainda dormiam, o seu despertar é intenso e demora poucos minutos, primeiro uns ziguezagues ao descer a rua, que são muitos os carros encostados em segunda fila e um taxista a mostrar as suas habilidades passa quase de raspão. desço mais um pouco, fico parada no trânsito. do meu lado direito um imponente veículo rebocador amarelo, com um enorme gancho para agarrar. não consigo evitar, quero olhar demoradamente para os seus pormenores, adoro todo o tipo de guindastes, mas logo a minha atenção é puxada para outro lado, mesmo à minha frente: um sujeito vestido de branco abre a porta traseira branca de uma carrinha branca de transporte de carnes. lá estão elas, penduradas nos respectivos ganchos, assim na vertical, baloiçando com ligeireza. penso nessa estranha comunidade onde se encontram os restos do que outrora foram espécies de vida diferentes: porcos, patos, vacas, galinhas, cujas carcaças, reunidas em série, pertencem agora a uma nova colecção de um outro mundo no mesmo mundo. reparo nas riscas brancas de gordura e nas costelas de um animal que não sei reconhecer. lembram-me as minhas costelas. algo perturba bruscamente o fluxo de associações livres, uma náusea, a sensação do odor a bedum. troco sinais faciais com o motorista do autocarro à minha esquerda. está impecavelmente penteado e barbeado, sorri e faz-me sinal que avance. reparo no brilho gorduroso da pele do seu rosto pálido, misturando-o com a visão das carnes. ainda um pequeno desvio: passar numa rua com nome de arbusto onde há muitos anos morei e repetir o gesto já costumeiro de me deixar ficar por instantes, junto ao prédio, a observar a varanda do segundo direito, verificando, com espanto, que as persianas de palha desses tempos remotos ainda estão nas janelas da casa onde morei.