segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

um airbag onírico

havia uma estranha forma de massa atmosférica, aérea, que há algum tempo parecia posicionar-se em seu redor. era densa, uma espécie de airbag. por vezes aquilo disparava, algum solavanco mais forte, e ela ficava completamente enterrada naquela coisa almofadada, algo agradecida, pelo amortecimento do choque, mas ao mesmo tempo cada vez mais intolerante ao facto de todo o espaço vazio à sua volta estar preenchido por um mecanismo de defesa tão espaçoso e claustrofóbico. na maior parte das vezes essa espécie de airbag estava recolhido, ainda que preenchesse à mesma todo espaço, como se se constituísse, tácita e inexplicitamente, como a própria condição formal da existência do espaço. os direitos do espaço enquanto forma pura iam todos por água abaixo e o vazio não era pleno, mas um falso vazio, mais do que definido e predefinido por essa condição airbagiana do espaço.

num sonho muito agitado, esta ideia que não a largava circulava de todas as formas e feitios, assumindo uma série de variações nas narrativas fragmentadas pelo constante despertar. a luz estava ligada e iluminava o espaço em demasia, a noite não parecia bem uma noite. não havia suficiente impulso vigilante para a ir desligar. tudo acontecia num limbo que prendia os movimentos sensório-motores. tentava em vão movimentar um braço, alcançar o interruptor da luz com o olhar e esperar uma reacção corporal em conformidade. mas nada daquilo tendia efectivamente para a acção e tudo se voltava a misturar com o problema do airbag, que era urgente solucionar antes do dia recomeçar. se nos carros há um botão para desactivar o airbag, esse botão também terá de existir fora dos carros, nestes airbags não menos reais, mas feitos de matéria onírica. a cada micro-despertar - a luz, era preciso desligar a luz para encontrar o botão do airbag - o botão voltava a sumir-se, bem como todas as vias que a ele pareciam estar a levar. num dos primeiros sonhos ela conversava no banco traseiro de um táxi sobre o tempo em que os carros não tinham airbag e o taxista, um emigrante de sotaque indecifrável, assegurava que os airbags sempre tinham existido, que até os tuctucs, esses sucedâneos dos veículos primitivos à tracção humana, os tinham, mas que vinham de um mecanismo interior da máquina, não podendo ser activados ou desactivados quando se queria. a história do airbag começava a ganhar contornos labirínticos e os labirintos pareciam ser de todos os tipos, desde os mais centrados aos acéfalos, absolutamente sem centro nenhum, àqueles que eram só uma linha. e num comboio em que lia descontraidamente a paisagem chuvosa com a sobreposição das formas da água da chuva no vidro e escrevinhava gatafunhos tortos pela trepidação, novamente a história do airbag começou a fazer-se notar. os desenhos criados pela água da chuva no vidro do comboio eram bastante consoladores. o que era vertiginoso era quando o comboio, depois de parar, voltava a ganhar velocidade, e as linhas moventes agarradas ao vidro lutavam pela sua vida, colando-se a ele tanto quanto podiam, num magnetismo qualquer entre a água, o ar e o vidro, mas iam mirrando e desaparecendo, sugadas por um fantasmagórico vácuo, até serem apenas gotículas desfazendo-se em nada. depois novamente a chuva, as formas e a paragem, a janela ou o quadro. o frenético movimento das formas semi-transparentes e aparentemente diáfanas que escondia uma densidade e opacidade maiores. era preciso desactivar aquilo. levantou-se bruscamente. ia finalmente apagar a luz, para se encontrar com a noite. mas ainda estava no comboio, o interruptor da luz tinha desaparecido e ao longe havia uma passagem entre carruagens, que deveria atravessar. um gato saltou subitamente por cima do seu corpo. soltou um grito seco e levantou-se. apagou a luz. não era o botão do airbag, mas era como se fosse.