sábado, 20 de maio de 2017

o difícil de dizer

  Aprendermos a perder-nos na cidade, exactamente: ouvir os nomes das ruas como os estalidos dos ramos secos, como gargantas de montanha que pautam as horas do dia. Benjamin fala sobre isso com uma escrita anómala, uma escrita em vórtice que procura chegar ao difícil de dizer, àquilo que está no fundo e mal se vê. Quando é que a cidade se torna cidade da perdição? Onde tem origem o labirinto, quando nos adestramos para a arte de nos perdermos? "Tarde" (...).

  É bela, esta velocidade vertiginosa da escrita, este recuar até às marcas da tinta nos mata-borrões da infância em poucas linhas, à procura do labirinto primordial. (...)

 Quem escreve histórias sabe que as razões poéticas não são falenas de asas transparentes. Têm carne e sangue, paixões, sentimentos complexos: poesia é apalparmos o ventre com movimentos nunca previsíveis.  (...)

  Nos mitos há sempre qualquer coisa que nos toca cá dentro. (...)

  O que é preciso é aprender a falar com orgulho da nossa complexidade, de como ela molda a nossa vida social, no amor e na cólera. Para fazê-lo é preciso aprender a arte de nos perdermos no penoso e no intricado, não há Ariadne que não cultive em qualquer parte um amor molesto, a imagem de uma mãe muito amada que, no entanto, põe no mundo bonecas suicidas e minotauros. 

  Ouvirmo-nos, vermo-nos. Nos labirintos metropolitanos por vezes pedimos destemidamente sepultura para o irmão, às vezes colaboramos na morte do meio-irmão para fugirmos com o seu assassino, em certos casos matamos os próprios filhos, e as mais das vezes pronunciamos maldições terríveis antes de sermos nós a cair, vítimas das Fúrias.

Elena Ferrante, "Escombros", Relógio D´Água, pp. 133-141




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