sábado, 23 de dezembro de 2023

O bom escritor


O bom escritor não diz mais do que aquilo que pensa. E muita coisa depende disso. É que o dizer não é apenas a expressão, mas também a realização do pensamento. Do mesmo modo, andar não é apenas a expressão de um desejo de alcançar um objectivo, mas a sua realização. Já a natureza dessa realização, se ela é conforme ao seu objectivo de forma exacta ou se se perde, exuberante ou imprecisa, no desejo – isso depende do treino daquele que está a caminho. Quanto mais disciplinado for, evitando os movimentos supérfluos, gesticulantes e deambulantes, tanto mais cada postura do corpo se basta a si mesma, e tanto mais adequada a sua actuação. O mau escritor tem muitas ideias e esgota-se nelas, como o mau corredor, não treinado nos movimentos indolentes e impulsivos dos membros. Mas é por isso mesmo que ele nunca pode dizer sobriamente o que pensa. O dom do bom escritor é o de, pelo seu estilo, dar ao pensamento o espectáculo oferecido por um corpo treinado com inteligência e eficácia. Nunca diz mais do que aquilo que pensou. Assim, a sua escrita aproveita, não a ele próprio, mas tão somente aquilo que quer dizer.


Walter Benjamin, «Pequenas habilidades», Imagens de pensamento, ed. e trad. João Barrento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, pp. 255-6.

Olhar para cima


Depois de uma pequena caminhada pela floresta, ainda com uma frase na cabeça, de uma conversa telefónica: 'mas e o que se faz enquanto se espera?' escrevo este pequenino texto, feito como notas que se escrevem, como dizia uma escritora no seu diário, para evitar que os momentos de uma vida se desperdicem, como quando se deixa uma torneira aberta. Pensei que poderia chamar-se "olhar para cima", provavelmente porque enquanto falava ao telefone, a caminhar, ao surgir no meio da conversa essa frase sobre a espera, me encostei a uma árvore e olhei para o céu. Não foi junto a uma árvore que os dois sujeitos rocambolescos daquela peça esperaram por aqueloutro senhor que nunca mais chegava, sem saber quais os contornos dessa espera? Talvez enquanto esperamos pudéssemos olhar para cima, devo ter pensado, para o céu azul ou para as nuvens. Ouvi outra escritora dizer que gostamos de olhar para as nuvens porque elas nos fazem pôr o coração ao alto, nos fazem olhar para cima, e que os cientistas cognitivistas dizem que colocamos sempre os deuses num lugar ao alto, seja no céu ou num monte grego, porque olhar para cima causa uma subida de dopamina no cérebro. Eles lá sabem. Mas sabemos também nós como as nuvens inventam a nossa livre imaginação, quando nos deitamos na areia quente da praia num dia de verão a olhar para as suas formas moventes no céu e imaginamos todo o tipo de animais fabulosos e pequenas histórias. Cheguei a casa, abri o computador, deitei fora um pequenino papel que tinha passado as últimas horas a esfarelar dentro do bolso do impermeável, como quem deita fora o último vestígio de alguma coisa que se quer esquecer e sentei-me para escrever: olhar para cima. 



sábado, 16 de dezembro de 2023

Atenção

talvez desaparecer naquilo que se vê seja a melhor formulação da atenção que até agora encontrei. não se trata de nos esquecermos de nós, de por momentos acreditarmos no que vemos, mas da experiência de uma passagem naquilo que se vê, que nos retira de uma relação eu-mundo e nos torna mundo.

domingo, 26 de novembro de 2023

Da densidade da prisão

Da densidade da prisão surge a voz desse outro em nós. o canto traz uma avalanche de coisas das profundezas, não sob a forma de linguagem, mas de ritmo. cântico dos cânticos, sopro vital, contorcionismo vocal, murmúrio ondino, devaneio amortecedor emudecedor dos gritos intensificados pela ausência. 

diz o poeta palestino:

"Prison is density. No one spends a night there without training his throat on what resembles singing, for that is the way one is allowed to tame solitude and preserve the dignity of pain. To hear your own hoarse voice means that your other has spent the night with you and whispered your personal news to you in a room. The narrower it becomes, the wider what lies beyond it grows. You embrace the world, infatuated with reconciliation."                                    

Mamoud Darwish, "In the Presence of Absence". Tradução do árabe de Sinan Antoon. 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Imagens e mais imagens

Quando ouvi aquela música na rádio, o aqui ao luar, dos Xutos, a impressão foi intensa. mesmo apresentando-se esbatida ou longínqua, era forte e parecia querer arrancar-me dali. A sensação de ter esquecido a fonte daquela intensidade perturbava. algo nela me era muito familiar, importante, sem dúvida, mas não me lembrava de onde. Fiz pisca para a esquerda, indecisa, pois se optasse pela lasanha feita em vez do jantar de petiscos ainda a fazer com húmus e guacamole, deveria fazer pisca para a direita, uma buzinadela de algum estressado atrás de mim, as miúdas a fofocar lá atrás e, apesar da confusão de sons e de acções sobrepostas, apesar de procurar manter-me concentrada nas minhas acções imediatas, aqueloutra impressão parecia ainda mais imediata e a sua intensidade, mesmo depois de diminuir o som da  música, para me manter atenta, destacava-se. A impressão ganhou autonomia à minha revelia. Traçava o seu próprio percurso. aquela música tinha activado um dispositivo qualquer e começavam a cair imagens e mais imagens, como na descida de Virgílio, como naquelas máquinas antigas de diapositivos, caíam e projectavam-se no ecrã da minha cabeça. Mas eu afastava-as, porque tinha de ver a estrada, ultrapassar a barreira sonora, deixar a senhora e o seu cão atravessarem na passadeira e não deixar de esboçar um sorriso. Iam caindo com uma sequência algo dispersa, mas começavam a fazer sentido, já sabia de onde vinha a música. Tocava num restaurante de praia, depois de um jantar com muitas pessoas, e tinha ficado gravada no meu corpo quando saí para a falésia e desci as escadas até à praia. impressão complexa, esta, quando a recebi no carro, era já feita de tantas camadas de imagens e associações de impressões. não podia dizer da impressão que a música me causara que estava no passado nem no presente, ela era puro virtual, sempre outra, à luz do devir da minha vida.

domingo, 12 de novembro de 2023

Primeira memória

Sempre que encontro um certo tipo de porta, aquelas portas, muitas vezes em cozinhas, que têm uma parte de vidro em cima, sou tomada por uma estranha e intensa mistura de sensações, ao mesmo tempo angustiante e reconfortante. Todas essas portas, estejam elas onde estiverem e esteja eu onde estiver, me são muito familiares e me provocam esta forte impressão que encontro na minha infância. Tento aguentar-me tanto quanto posso em bicos de pés. Não aguento e vou abaixo, mas volto aos biquinhos dos dedos, já doridos, para os olhos alcançarem o vidro da porta e esqueirar o olhar para lá do vidro. Há imensa luz lá fora. É quase ofuscante. Sinto o calor do sol a tocar-me na pele. O queixo, quando me ponho em bicos de pés, alcança a bandeira da janela, apoiando-se nela, como que encaixado, contra o vidro frio. Vejo-me assim, pequenina, naquela posição de equilíbrio e chamo alguém: Bebu, Bebu. Só uma nesga de árvores, talvez ameixeiras, ao fundo. Dele já não há rastro. Mas a janela é o lugar onde devo ficar, sempre a tentar alcançar com os olhos, agarrada como posso, esse mundo lá fora para onde fugiu o meu irmão.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Dos nomes e da guerra

Walter Benjamin disse-nos que se deve claramente distinguir o limiar da fronteira. Estamos a testemunhar, em massa, uma guerra onde se confundem fronteiras e limiares, onde as vidas daqueles que foram esperados em terra, mesmo se numa terra imaginária, não são vistas pelo mundo poderoso do progresso como vidas. Vidas sem nome em terras imaginárias. Quando uma mãe escreve os nomes dos filhos que a qualquer momento poderão estar mortos no seu corpo quente e vivo, quando as crianças, absolutamente expostas à barbárie, fazem pulseiras com os seus nomes, estes gestos são a preparação de um rito que dá conta da experiência da passagem da vida à morte, mas também da morte à vida. Aquele a quem foi dado um nome foi esperado em terra. Dar um nome é quando se nasce um gesto de esperança, quando se morre o nome guarda os traços dessa vida vivida e que se esperou ser vivida. Se dizer os nomes daqueles que morreram é sempre um modo de lidar com o o sagrado e o profano da morte, marcar os corpos daqueles que ainda estão vivos com o nome é o gesto de quem, ainda que tenha os olhos virados apenas para o passado, procura resgatar, nos escombros, a experiência do limiar, o direito de existir.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Da ambiguidade

a ambiguidade tem pouco interesse como recurso estritamente estilístico. quando tomada nessa acepção torna-se também perigosa. a ambiguidade de um gesto impensado, de uma palavra dita, de uma relação, a ambiguidade entre pessoas, imagens, acontecimentos é algo como um espaçamento, brecha ou racha que não deixa que um sentido único se atarrache ao acontecimento como se fossem um frasco fechado. há uma folga que marca a diferença absoluta entre o acontecimento e o seu sentido. amplificar ou reduzir esta brecha é qualquer coisa de que todas as poéticas se têm ocupado. cada zona de ambiguidade estética tem como seu correlato uma zona de ambiguidade ética. achar que a ambiguidade de uma imagem ou de uma situação é interessante porque podemos ler um acontecimento de muitas formas diferentes leva a pouco mais que uma variação moderna da torre de babel. tomada nessa acepção estaremos sempre no âmago puro e simples da linguagem, com ou sem entendimento, feita de esperanto ou das múltiplas línguas de babel. a ambiguidade está fora da linguagem, mesmo se a linguagem dela depende, definindo-se justamente pela possibilidade de dar conta do contacto com o acontecimento no momento da aproximação existencial ao próprio acontecimento e não a partir da sua leitura.

sexta-feira, 10 de março de 2023

Perder o pé, a alma adora nadar

Andar pela areia molhada, os pés a enterrar, quando enterram demasiado a sensação deixa de ser de conforto e assusta um pouco, como se a terra dissesse baixinho, um dia engulo-te. Rebentação. Massagens agradáveis com força moderada das ondas a rebentar contra o corpo. Avanço, quero tirar os pés da areia e mergulhar, no momento da crista da onda, que é como gosto, imediatamente antes da onda começar a rebentar. Mergulho em direcção ao fundo e saio do outro lado da onda. Repito vários mergulhos à medida que as ondas avançam. Sinto o nariz a arder. O gosto a sal na boca. Vou avançando até perder o pé. Já o perdi. Pequena sensação de euforia. Passamos a outra fase. Adeus terra, agora sou eu e a água, como no útero, outra vez, ou como num daqueles rios do submundo das antigas histórias gregas, o letes ou o estige, esquecimento ou invulnerabilidade absoluta. "A alma adora nadar", palavras de Michaux. Perder o controlo do corpo. É a alma que nada. O horizonte é estupendo.

Distância

Uma criança ouve as palavras trocadas entre duas mulheres. Uma delas afasta-se. A criança aproxima-se da mãe: porque estavas a dizer à tua amiga, que ela estava distante, se ela estava mesmo ali ao teu lado? Olhando para o filho, que a fitava à espera de uma resposta, a mulher sorri um sorriso ao mesmo tempo incomensurável e contido (nesse sorriso talvez estivesse a resposta mais exacta que se pudesse encontrar para aquela pergunta) e prepara-se para tentar uma explicação. Mas entretanto a criança tinha fugido, a correr, atrás de um cão.
cada vez me interessam mais os diálogos entre pessoas. no cinema, na vida, na literatura. um diálogo que ocorre antes de mais em nós, numa necessidade urgente de divergir, dissociar, diferenciar, distanciar. para ver alguma coisa disso que se está a sentir. nos diálogos mais interessantes, mais do que encontros, há tangentes, aproximações, silêncios que contrastam com torrentes de palavras sem significado particular. nas conversas que temos uns com os outros percebemos que existe, para lá de uma troca de informações corriqueiras sobre a vida, sempre, uma necessidade de expressão meio confusa. uma vontade de falar com o outro, em que o outro nem é bem o outro e nós não somos bem nós, porque há este impulso de sair de nós, de nos distanciarmos de nós mesmos, o gesto da interlocução cria sobretudo um lugar fora dos interlocutores. um lugar especial. podemos amar profundamente o nosso interlocutor, dizer-lhe alguma coisa ou querer ouvir alguma coisa. por vezes uma coisa concreta, muitas vezes uma coisa abstrata, um silêncio, vazio. mas as conversas acabam por ser verdadeiramente feitas de tudo menos aquilo que se tem para dizer. as hesitações, as palpitações que se sentem de repente e fazem repentinamente o assunto, pequenas forças que não sabem manipular e nos influenciam, essas sim, conduzem as conversas, tornando-as não só inacabadas como ainda não começaram. estamos sempre para começar a conversa, na fala, mas ainda não na conversa a que aspiramos. balbuciamos por vezes coisas desconexas, ouvimos-nos e experimentamos um começo. parece que é isso que as conversas têm de especial, esse começo.