segunda-feira, 29 de maio de 2017

nas ruas


entretanto, é tão largo o tempo entre não sei o quê, essas acções que se passa a vida toda a fazer, os dias, entre os pequenos gestos, um passo e outro passo. entretanto o tempo passa, já passou, vai passar. é largo mas não tanto. e ainda assim, continua essa absurda e vaga expectativa. perder-se nas ruas, ter prazer nisso, apesar de ou precisamente por haver tantos elementos confusos. tantas vezes trocar olhares com quem passa mas sem ter de esmiuçar os inúmeros detalhes dessas trocas. nas ruas não há nada e está ainda tudo por fazer. ninguém quer saber das dores, se é aqui ou ali. nem dos projectos longos. importam os deslocamentos, a sombra e o sol. a sede, a fome e uma série de cartografias, energéticas talvez, dos cantos, das esquinas, dos becos, das entradas, saídas, das casas, sim as casas e as portas, janelas, abertas e fechadas. sentidos proibidos, subidas e descidas, ruas vazias, ruas cheias. gente em pé, gente sentada. buzinas. burburinho. chuva, vento, obras. chamamentos. nas ruas treinamos a nossa consciência das margens, mais ou menos aquilo a que um filósofo americano chamou fringe consciousness em que se experimenta uma espécie de atenção ao mesmo tempo vazia mas extremamente activa. vazio pleno. há gente que passa, como um vento, e há gente à espera de qualquer coisa, mas a espera que constitui as ruas é uma espera sem coisas, esvaziada do quê. encontram-se quase sempre nas ruas perspectivas risonhas, mas quando a perspectiva é escura é fácil ser tenebrosa, o abismo tão perto. escolho um atalho, encosto-me num balcão de um café, deixo o resto para depois, enquanto mexo o café só para contemplar os desenhos das espécies de nuvens que nele se formam e confirmo que nas ruas não é a cronologia que reina, que é tudo o que escapa à cronologia que é do seu domínio e que há um saber profundo de quem se perde pelas ruas: o de que tudo, inevitavelmente, será feito no último momento, esse momento que, tal como as ruas, não advém de nenhuma espera. talvez seja o que nos vale.

sábado, 20 de maio de 2017

o difícil de dizer

  Aprendermos a perder-nos na cidade, exactamente: ouvir os nomes das ruas como os estalidos dos ramos secos, como gargantas de montanha que pautam as horas do dia. Benjamin fala sobre isso com uma escrita anómala, uma escrita em vórtice que procura chegar ao difícil de dizer, àquilo que está no fundo e mal se vê. Quando é que a cidade se torna cidade da perdição? Onde tem origem o labirinto, quando nos adestramos para a arte de nos perdermos? "Tarde" (...).

  É bela, esta velocidade vertiginosa da escrita, este recuar até às marcas da tinta nos mata-borrões da infância em poucas linhas, à procura do labirinto primordial. (...)

 Quem escreve histórias sabe que as razões poéticas não são falenas de asas transparentes. Têm carne e sangue, paixões, sentimentos complexos: poesia é apalparmos o ventre com movimentos nunca previsíveis.  (...)

  Nos mitos há sempre qualquer coisa que nos toca cá dentro. (...)

  O que é preciso é aprender a falar com orgulho da nossa complexidade, de como ela molda a nossa vida social, no amor e na cólera. Para fazê-lo é preciso aprender a arte de nos perdermos no penoso e no intricado, não há Ariadne que não cultive em qualquer parte um amor molesto, a imagem de uma mãe muito amada que, no entanto, põe no mundo bonecas suicidas e minotauros. 

  Ouvirmo-nos, vermo-nos. Nos labirintos metropolitanos por vezes pedimos destemidamente sepultura para o irmão, às vezes colaboramos na morte do meio-irmão para fugirmos com o seu assassino, em certos casos matamos os próprios filhos, e as mais das vezes pronunciamos maldições terríveis antes de sermos nós a cair, vítimas das Fúrias.

Elena Ferrante, "Escombros", Relógio D´Água, pp. 133-141




quinta-feira, 18 de maio de 2017

manhã

não há agora a praia, de preferência deserta, para gritar e às vezes um suspiro não chega. escreve-se qualquer coisa o mais rapidamente possível e sem cortes. o acordar é estranho, tudo a rodar mal ponho o pé no chão, pelo que a primeira coisa a fazer é mesmo o café. depois acordar as duas miúdas da casa, a loura e a morena, mas já com a roupa ali à frente dos olhos para pouparem os dez minutos do costume com o argumento de que não sabem o que vestir. gosto de as chamar devagar, uma a uma, com beijos e falas doces à mistura, que o acordar é uma coisa tremenda. é a parte mais deliciosa da manhã, esse momento em que se fala baixinho e em que ainda cheiramos todos a noite, sonhos e preguiça. logo a seguir tento entrar tanto quanto me é possível no modo máquina, com um programa definido: pôr comida na mesa. a fruta primeiro, se não não comem fruta, depois o resto, pão, mel. enquanto comem ir tomar duche, rápido, voltar para ver se está tudo ok, mas uma já se besuntou toda de mel e tem de mudar a t-shirt, respiro fundo. mas qual é que eu visto? não sei qual é que fica bem! uma qualquer, uma qualquer (começo a usar um tom mais alto). entretanto preciso do tal café, tenho de comer alguma coisa antes, ainda de toalha no corpo, demoro demasiado com o café, que era só para engolir, não para saborear. porque é que estou a sentir o pé todo molhado, será que não me limpei bem? ah entornou-se o leite no chão, eu limpo eu limpo, sim? mas não, querida, deixa lá, não limpes (é melhor não), depois trato disso. estamos atrasadas, tenho de me vestir, esqueço o café, tenho de preparar as lancheiras, não, elas já cresceram, as miúdas (e não reparei), está tudo aqui, pronto, é só pôr nas lancheiras, sim? preparo-me para sair de casa. pinto os lábios sem espelho, não preciso de espelho. calcem-se e penteiem-se vá lá, vá lá, é já (eu já disse isto dez vezes) quantas vezes mais tenho de repetir, e entretanto a morena decide ir limpar os ténis como me viu fazer antes, com um algodão húmido, oh que bom, penso cá para mim meia nostálgica, já faz aquilo sozinha, mas depois sinto um cheiro estranho na casa de banho, ao mesmo tempo que reparo que o tecto rachou mais uma vez e está a pingar água. não, não, por favor não me digas que usaste acetona para limpar os ténis? pois, sim. todos estragados. bora, vamos sair. agora! mas ainda não mudei de t-shirt. paciência, é agora! o carro? onde está o carro? oh não, está a milhas, por causa das obras. apanhamos um táxi, senão faltam à ginástica e eu à reunião. táxi! mãe, tens batom nos dentes. entramos no carro, bom dia. é uma senhora taxista, simpática qb. limpo os dentes com o dedo, já está bem? reparo que me esqueci do telemóvel, ainda tenho de o ir buscar a casa (perfeito), a paisagem de areia, gruas coloridas de várias dimensões e o som das máquinas dura o caminho todo. aquela paisagem estranha por vezes é agradável. chegamos à escola. beijos, bom dia. fecho a porta da escola. sigo a pé. dia de sol em lisboa e o rio muito azul ao fundo. seguem-se aqueles instantes em que não penso em nada, ou, o que parece ir dar ao mesmo, em que o pensamento se deixa impregnar de tudo, freneticamente e em simultâneo, numa torrente de cruzamentos e choques, derivações, encontros e fugas sem fim. volto a mim. tenho de saber as horas. sigo por uma rua não muito longe daquela que todos os dias costumo seguir, muito perto até, seguramente, pois pelas suas brechas e travessas consigo ver todos os meus caminhos costumeiros. encontro um velho a quem pergunto as horas. responde-me contrafeito que não é essa a pergunta, com certeza, e põe-se diante de mim, assim como quem espera a pergunta certa. olho com atenção para mim, para as minhas mãos e para a roupa que trago vestida, a ver se as reconheço. depois olho para o velho, procuro reformular a questão, mas só me sai um: queria saber as horas, por acaso sabe? é que não tenho horas. e acha que eu tenho disso? diz-me o velho. não, não, deixe lá. apetecia-me sorrir-lhe mas continuo em frente. sei o suficiente sobre as horas para acelerar o passo, mas a rua parece nunca mais acabar e pelas ruelas e brechas que a atravessam lá vou eu vislumbrando de raspão todos esses trajectos feitos outras tantas vezes, e os tempos todos sobrepostos, naquela rua.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Ce n'est que par soudaines explosions que la conscience souterraine, réussissant à forer l'écorce des jours, jaillit comme un jet brûlant de puits artésien, - pour quelques secondes seulement -, de nouveau disparue et sucée par les lèvres de la terre. 

Apenas por súbitas explosões a consciência subterrânea, conseguindo perfurar a casca dos dias, jorra como um jacto ardente de um poço artesiano, - apenas por alguns segundos - voltando a desaparecer, sugada pelos lábios da terra.


Romain Rolland, Le Voyage intérieur: Songe d'une vie

Éditions Albin Michel, Paris. 

sexta-feira, 12 de maio de 2017

jogos


todos teremos talvez experimentado, em crianças, essa fase em que queremos saber quanto tempo aguentamos sem respirar. cronometramos e experimentamos suspender a respiração até não aguentarmos mais: debaixo de água ou de uma almofada. é um pôr-se à prova, um exercício de aproximação a essa estranha imobilidade, uma espécie de jogo de suspensão da vida. talvez fosse um pouco o mesmo que procurávamos, eu e o meu irmão, quando nos fingíamos de mortos. não só para assustar os adultos, mas para pôr à prova quanto tempo aguentávamos parar os movimentos da caixa torácica e os minúsculos movimentos do corpo, do rosto, apreendendo também, aos poucos, qualquer coisa essencial, sobre o sentido voluntário e involuntário das nossas acções e decisões corporais. e se numa esquina qualquer, a meio dum percurso quotidiano, um espaço enquadrado de maneira aparentemente arbitrária nos aparecer com tantas perspectivas diferentes que se torne impossível ver, produzindo-se um descentramento tal que a escolha se torne inviável, imponderável, inescrutável? produz-se uma suspensão do sentido das coisas, uma imobilidade, e voltamos a essa espécie de jogo originário da infância. uma síncope, uma pequena morte em vida. e outra vez esse jogo: quanto tempo aguentas nem morto nem vivo? a decisão acabará fatalmente por vir, tão natural quanto desesperadamente, como o sopro de ar que se inspira quando não se pode mais sem respirar.  inúmeras são as vezes em que não há escolha, mas antes minúsculas decisões involuntárias, advindas de jogos deste tipo. qual a margem, o limite, entre a escolha e a decisão? acender ou não o cigarro, atravessar ou não com o sinal vermelho, calçar ou não estas meias, aceitar ou não um lapso de linguagem que pode determinar como se vive. há qualquer coisa simultaneamente anódina e dramática nestas pequeninas decisões: a certeza inconfessável de que não são mensuráveis. quero os dois livros que folheio na livraria. só posso levar um, mas quero os dois. levo este. não necessariamente porque me interesse mais. por vezes a dimensão, o material, a relação táctil entre o livro e a minha mão, qualquer outra coisa alheia ao livro em si. dos dois indivíduos a quem me posso dirigir para o comprar, dirijo-me a um e não ao outro que até estava mais próximo de mim, terá sido aquele seu minúsculo gesto facial com o sobrolho direito, terá ele captado a minha atenção? que estranha atenção esta que nos habita, uma atenção esburacada, que ao mesmo tempo nos agarra e faz cair. 

um sonho de outubro

Um sonho de Outubro passado. Num bar que conheço bem, plantado em cima de uma praia, em parte seria o Sargo, na Parede, mas com uma escadaria muito mais alta. Tinha várias camadas, varanda e terraço. E também cave. Quando abro a pequena porta para a cave, à direita, encontro uma pequenina divisão com livros, mesinhas pequenas e fauteiuilles anos 20. Há caderninhos de notas de todas as formas, cores. Reconheço alguns como meus, outros não. Sigo em frente, o corredor é feito de areia e pedra e, novamente à direita, há uma arcada feita de rocha que vai dar directamente ao mar. Vou molhar os pés. A maré está vazia mas pode subir de repente e aquela cave está fechada. Então é aqui que vou morrer, penso. Volto à pequena divisão dos livros, trago comigo dois caderninhos, um maior e um mais pequeno. Abro a pequena porta e saio da cave. Vou tomar café ao terraço, que é mais alto.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

chuva

e veio a chuva, muita chuva, inesperadamente, apesar da nuvem negra e pesada a norte o indicar. e eu que já não esperava nada de novo por hoje e nem nos próximos dias. se os dias se repetem indefinidamente iguais, desconfio que não seja vida. mas ela surpreende, assim, na mais singela gota de chuva, e vem outra vez esse hábito um pouco terrível de uma muito vaga esperança. também nos sonhos me visita o inesperado, por mais recorrentes eles que sejam, como o de voar - ou será melhor dizer pairar - por cima dos lugares, com todas as suas variações, desde o sonho em que há a minha decisão de voar, que efectuo por vontade, de fugir ou de outra coisa qualquer que agora não sei identificar, até à gradual constatação de que estou a ficar mais leve e começo a pairar e depois a subir a subir, de braços abertos como que para me equilibrar, e a ver tudo de cima, à distância e sem enquadramento possível, sem contornos ou com contornos sempre móveis. por vezes já não voo há tanto tempo que o medo de não o conseguir fazer me toma, como quando deixo de andar de bicicleta durante tanto tempo e temo já não saber como. mas, tal como se diz que nunca nos esquecemos como se anda de bicicleta, assim acontece com o voo. e há aquele outro sonho recorrente, o das casas. varia indefinidamente, claro, é feito de muitos sonhos e de muitas casas, umas em que vivi efectivamente e outras que só nos sonhos habitei, mas na maior parte são verdadeiras misturas de umas e outras. dei-me conta, ao mesmo tempo que suspirei de alívio com a torrente de chuva e a força das gotas no vidro do carro e depois no corpo, quando saí para me molhar, que não são só as casas onde vivi que afectam as dos meus sonhos, mas que as casas dos meus sonhos determinam os espaços em que estou. aconteceu, por exemplo ainda há pouco, a escorrer água, entrar num pequeno café onde nunca entrara antes e conhecê-lo tão perfeitamente, de sonhos seguramente, saber exactamente o canto para onde queria ir, sentir-me em casa.