domingo, 30 de outubro de 2016

ver de óculos escuros


Não é que não me aconteça ter vontade de escrever notas e pensamentos soltos quando vejo filmes, mas em geral, num filme que vejo pela primeira vez não acontece e resisto se sentir essa necessidade. Mas ontem, em Austerlitz, de Sergei Loznitsa, foi preciso escrever algumas, insistentes, frases que me vinham à cabeça. Foi uma maneira de não sucumbir ao seu efeito emocional.

Mas agora quando fui ver as notas não havia nada. Nada. Vazio. Só espanto.

A câmara fixa de Austerlitz capta a chegada da multidão que visita os antigos campos de concentração (Sachsenhausen e Dachau). Uma enorme massa de gente, aproxima-se do portão do campo. No início do filme ficamos à volta de quinze minutos, talvez, a contemplar o movimento desta gente, a dirigir-se  para o portão do campo. É uma gente particular, organizada sob a forma da excursão. São turistas: de mochila, microfone e mapa na mão, roupa confortável de caminhada, chapéu e óculos escuros. Estão confortavelmente acompanhados - ou no contexto de um grupo turístico ou em família. A câmara varia entre o flano fixo que os contempla de frente e o plano de traseiras, que nos mostra a entrada no campo. Estes corpos dirigem-se numa massa compacta e direccionada para o interior do campo, como esses outros que o fizeram antes, mas que não voltaram a sair. Esses estavam nus. Estes estão vestidos, hipervestidos, sobrevestidos.

O que vão ver?
Dentro do campo contemplamos o movimento desta multidão que constantemente alterna entre a informação do microfone que nunca ouvimos e o gesto de tirar fotografias com o telemóvel.
Vários, posam para a fotografia: nos troncos de tortura. Nos "banhos". Nos fornos.
Outros, abeiram-se ligeiramente, tentam ver melhor, os olhos não vêem. Finalmente tiram uma foto com o telemóvel e seguem caminho.
Como é que se posa para uma fotografia nestas condições?
Que condições são estas?
O que é isto?
Um museu?
O que é um museu?
O que é isto?
O que é isto?
Quantos são? Quanto pagaram para entrar? Quanto?
O que vão ver?
O que vêem?
Que olhos?
Como é que fazem pausas entre as informações das visitas guiadas para comer uma "sandes"?
E depois seguem o guia, quando ele diz "vamos dar uma vista de olhos nos fornos"?
Mas, entretanto, tiram uma selfie de grupo.



quinta-feira, 27 de outubro de 2016

olhos















LBunuel, DVertov, SBeckett, MDeren, RScott
Un chien Andalou, Kino-Eye, Film, Meshes of the afternoon, Blade-Runner

terça-feira, 18 de outubro de 2016

ἄπνοια


Poesia: é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração. Quem sabe se a poesia não faz o caminho – também o caminho da arte – com vista a uma tal mudança? talvez ela consiga, já que o estranho, ou seja o abismo e a cabeça de Medusa, o abismo e os autómatos, parecem ir numa e na mesma direcção – talvez ela consiga então aí distinguir entre estranheza e estranheza, talvez a cabeça de Medusa se atrofie precisamente aí, talvez precisamente aí fracassem os autómatos – neste breve e único momento.
(...)
(O poema) mantém viva a memória das suas datas, mas – fala. É claro que fala sempre e apenas em causa própria, a mais própria que se possa imaginar. Mas penso (...) que desde sempre uma das esperanças do poema é precisamente a de, deste modo, falar também em causa alheia – não, esta palavra já a não posso usar agora –, é a de, deste modo, falar em nome de um Outro, quem sabe se em nome de um radicalmente Outro. (...) O poema detém-se ou alimenta esperanças – uma palavra que temos de relacionar com a criatura – quando se encontra com tais pensamentos. Ninguém pode dizer quanto tempo durará ainda esta pausa na respiração – o alimentar esperanças e o pensamento. O reino do que é “veloz”, que sempre foi o do “lá fora”, ganhou mais velocidade. O poema sabe isso, mas mantém a sua rota em direcção àquele “Outro”.

Paul Celan, “O Meridiano”. In: Arte Poética. Edição e tradução de João Barrento. Lisboa, Livros Cotovia, 1996

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

no meio das vertigens


Na descida da falésia até ao mar, observo duas pessoas cruzarem-se numa escadaria a pique. Uma desce, a outra sobe. Não se conhecem. No cruzamento trocam uma ou duas palavras, mas sobretudo a postura dos seus corpos e talvez um certo ritmo cardíaco permite uma estranha forma de reconhecimento, involuntário mas atento, e uma certa comunidade, como se há muito se conhecessem. Seguem caminho. Desço as escadas e cruzo-me com a  pessoa que sobe. Pergunto-lhe qualquer coisa objectiva. De olhos fixos na pedra, mas esforçando-se por ser cordial, diz-me que não sabe nada sobre o que eu lhe pergunto, que não pode saber. Só vê a escada, procurando agarrar-se como pode a um terreno extremamente escorregadio. Ainda tenta olhar para mim, mas é tomada por um grande desequilíbrio. Só depois da frustração de não obter a resposta desejada percebo que ela sofre de vertigens. Percebo então que naquele cruzamento que observei entre os dois se deu um encontro no meio das vertigens que ambos sentiam e presumo que, por um momento, tenham sentido um breve conforto naquela escadaria.

traços


andam sempre por aí, pelos corpos, entre os corpos. desde pequena que me fascinam: tiques, ou quase tiques, expressões corporais e faciais, esgares, esses gestos únicos e ao mesmo tempo banais. o gesto de pôr a carteira atrás do bolso das calças, o gesto de apanhar o cabelo. atender o telefone, abrir a porta de casa. posturas, maneirismos. uma certa maneira de fumar, outra de dormir, de esperar na fila do supermercado, de pegar na chávena do café, de agarrar no livro, de o sublinhar, de se limpar com a toalha depois do banho, de subir escadas, de soletrar em voz baixa, de fazer sinal para pedir a conta ao senhor do café, de colocar a mão no volante do carro, de deitar as palavras para fora da boca, de cantarolar. os traços desenhados no rosto pelo choro que vem, por um sorriso. o gesto de se desviar de um assunto, de se despedir. e não falo dos que não se vêem. serão infinitos? são pequeninos, minúsculos, seres liliputianos. mas uma meia dúzia deles, nem tanto, pode ocupar uma vida inteira e, nem que durem pouco mais que um ápice, durarão para sempre. acontecem entre pessoas, mas também entre as pessoas  e as coisas. na verdade há quase sempre coisas entre as pessoas e há sempre momentos em que nos tornamos coisas.
os traços ficam, transformam-se, alguns misturam-se uns aos outros, intensificam-se com essas misturas. outros parecem desaparecer e por vezes reaparecer modificados, estranhos. traços belos e traços terríveis, traços de uma vasta paleta de cores, ou não, serão talvez brancos, diáfanos: traços impessoais.

o terror: o desaparecimento dos traços. o negro absoluto.



quarta-feira, 5 de outubro de 2016


Nada lhe era mais insuportável do que a repetição do mesmo caminho. Mas, pensando bem, isto acontecia-lhe mais vezes de carro. Talvez tivesse que ver com a velocidade. Quando andava a pé, os caminhos eram sempre diferentes, mesmo quando se repetiam, provavelmente porque os acidentes naturais sobressaiam: uma luz particular ou um risco no céu. Um formigueiro que tinha hoje um desenho diferente. Os encontros. De carro o fantasma do mesmo caminho surgia mais vezes. Andava sempre à aventura, sempre outro, mais outro e outro caminho. Sim, teria a ver com a velocidade. A a percepção do mesmo e do diferente em velocidades e ritmos diferentes varia...