quinta-feira, 21 de setembro de 2017

conjugação

sempre achei, em criança, que havia mais no exercício de conjugar verbos que o mero, por tantas vezes aborrecido, declinar. algo me envolvia, um afecto inexplicável, uma espécie de desdobramento, de abertura, que acontecia ao declinar e conjugar um verbo e depois outro. como, comes, come. comerei, comerás, comerá. comemos. morreremos, morrereis, morrerão. morreu, morri. suplicaria, suplicarias, suplicariam. tinha saltado, tinhas, tinha saltado, havia. haver. haver de fazer. saltássemos ou desejássemos. se víssemos, vísseis, vissem e viessem, veriam. esperando, esperava, esperavas. encontrámos, encontrastes, encontraram e ficaram, amaram. amou. amaria. perdemo-nos, perdestes-vos, perderam-se. desdobrar-se-iam. tanto tempo, tanto modo. e tudo infinitivo.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

alguém me disse que ia receber uma prenda hoje. então, miúda, diz-me lá o que te aconteceu para vestires a camisa do avesso. perdi-me ligeiramente num voo de segundos por uma nuvem sobre o direito e o avesso, mas logo me foquei nos meus afazeres. dormir, acordar, sempre do lado certo da cama, andar pela cidade, nem se perder nem se achar, e pelo dia-a-dia e um dia depois do outro, isto depois daquilo. e as costuras da solidão viradas para dentro e as roupas bem postas. e se acaso ficaram as costuras do lado de fora, então dirão - e havemos de concordar -  foi um lapso.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

parto com dor

- No Fedro, Platão relacionou o trabalho do filósofo com o trabalho das parteiras. Ajudar a ideia a nascer, ajudar uma criança a nascer... a arte do parto é crucial do ponto de vista filosófico. A ideia pode morrer se não houver um parto cuidadoso, como o bebé.
- Parto sem dor? ou...
- Sim. quer dizer, não, não. com dor, ou pelo menos sem epidural ou anestesias artificiais. A dor, essa dor, do parto, é preciso senti-la, senão não é um parto, é outra coisa. Pode ser o nascimento de uma criança, e há as cesarianas, claro, mas, conceptualmente já não é um parto. E esse amor, esse amor que acontece mesmo quando a mulher está a parir, quando dela sai outra coisa, outra coisa, estranha, que não é ela - na verdade, biologicamente, a própria gravidez é uma monstruosidade. ter um ser estranho dentro de nós e não lutar contra isso...- é de uma bravia incrível e é de loucos, porque é uma coisa muito bárbara que está como que domada, não por nós, ou não unicamente por nós, mas por um gesto da natureza, da natureza com maiúscula, que doma uma monstruosidade. É um acto de amor, que tem de doer.
-  Porquê?
- A dor tem a ver com esse corpo monstruoso, mutante, extraordinário, que é produzido na gestação e no parto. A experiência em si dói e depois fica a memória dessa experiência, ou o que resta dela, os detritos.
Talvez haja na experiência amorosa uma sobra sem fim dos detritos duma experiência de parto. Esse constante arrancar-se a si mesmo um outro que se agarra, que se confunde connosco, mas que sabemos que tem de viver fora, irredutivelmente, apesar de o sentirmos numa confusão connosco. E quando a experiência não é adversa, quando se quer viver a estranheza, quando não se quer apagar a estranheza, isso é uma experiência amorosa. Nela parece haver sempre uma enorme folga, um aberto de tal forma escancarado - que vem dessa estranheza -  que não dá para aguentar sozinho porque a dor dilacera tudo. Talvez juntos a dor se transforme, quando se funde com uma certa promessa de vida, apesar da loucura por causa do impossível voltar-se atrás. Talvez o amor, louco, venha de aguentar essa dor que não passa, mas que já não é a mesma dor, porque já não é só minha, nem tua. Talvez o amor venha de querer viver a dor, como no parto. A dor da abertura.