sexta-feira, 29 de julho de 2016

medicina


Eu tento fazer filmes que sejam vistos por pessoas ou que sejam feitos por pessoas que tenham necessidade de os fazer para si. Da mesma maneira que um médico precisa de uma radiografia e o doente precisa de um médico e que, num certo momento, os dois precisam da radiografia para estabelecerem uma relação um com o outro. Tento fazer filmes assim, ou seja, por necessidade. (...) E eu tenho necessidade de ver mais longe, de fazer para aprender, de ler um mapa para viajar.

JLGodard, Introduction à une veritable Histoire du Cinéma, Albatros, 1980




Scénario du Film Passion 1982


sábado, 16 de julho de 2016

Preguiça


A alma adora nadar.
Para nadar deitamo-nos de barriga para baixo. A alma desloca-se e parte. Vai a nadar. (Se a vossa alma parte quando estão de pé, ou sentados, com os joelhos ou os cotovelos dobrados, para cada posição corporal diferente, a alma partirá com um andamento e uma forma diferentes...)
Costumamos falar de voar. Não é isso. É nadar o que ela faz. Ela nada como cobras e enguias, nunca de outra maneira.

 Henri Michaux, « La paresse » , Mes propriétés (1930), dans La Nuit remue (Poésie Gallimard, p. 110-111)

quinta-feira, 7 de julho de 2016

algumas faces de um cristal: o beijo

Jinny andava a correr, depois do pequeno almoço, e viu que as folhas se mexiam numa abertura da sebe. Pensou que fosse um pássaro no ninho, sentia-se assustada, as folhas continuavam a mexer-se. Passou a correr por Susan, Rhoda, Neville e Bernard, que conversavam na casa das ferramentas. Gritava e corria, cada vez mais depressa. As folhas verdes agitavam-se, o seu coração agitava-se. Foi contra Louis no meio dos arbustos e beijou-o. O seu coração saltava e as folhas continuavam a mexer-se sem haver nada a fazê-las mexer. Susan viu Jinny beijar Louis. Levantou a cabeça do seu vaso de flores e espreitou pela abertura da sebe e viu-os beijarem-se. Sentiu que tinha de embrulhar a sua ansiedade num lenço, dar-lhe um nó e fazer dele uma bola para a deixar entre as raízes das faias. Iria alimentar-se de nozes, procurar ovos entre as sarças e morrer ali. Bernard viu Susan a passar por eles, levava um lenço amarrotado como uma bola nas mãos. Os seus olhos pareciam os olhos de um gato antes de saltar. Deixou Neville e seguiu-a cuidadosamente para a poder consolar quando ela, cheia de raiva, pensasse : estou sozinha.

[paráfrase de um beijo narrado n'as Ondas de Virginia Woolf]

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Palavras de María Zambrano. Para Kiarostami.


E tudo o que rodeia o homem e ele próprio é arcano. O homem é a criatura à qual a realidade se dá como inacessível. Mas sentiu sempre a necessidade inaludível de clarificá-lo, de abrir caminho, de chegar a ele, de que lhe seja manifesto (...) Quando os deuses aparecem, é a sua forma que surge; ela é a novidade. Mas a forma não é só beleza, mas também capacidade de função. O que fica assegurado e libertado na forma é a função divina; o que encontra nela a sua garantia. Ao conceder-lhes forma, o poeta colaborou com os próprios deuses, como colabora todo aquele que serve uma revelação. (...) Cada deus abre um caminho no arcano inicial, no "pleno" que é, originalmente, a realidade que rodeia o homem. Não é o vazio a povoar-se de deuses, mas ao contrário: é o pleno da plenitude arcana, sagrada, aquele que se abre, se torna acessível através dos deuses (...) Transitar é, precisamente, viver, poder e ter para onde ir.