sexta-feira, 27 de outubro de 2017

nevoeiro e nuvens




há no nevoeiro uma propriedade especial e estranhamente espacial de dar provisoriamente corpo a um vazio. um corpo subtil mas concreto e fecundo, que não se pode ver mas que de uma maneira ou de outra teremos de atravessar. ele afirma-se numa insistência nua, elemento húmido e disposição melancólica que nos atravessam. porém é tão fugaz e tão limpo o seu desaparecer - não deixa traços - que fica apenas o desejo elementar e abstracto do atravessar e do ser atravessado. 


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

nevoeiro


num dia como outro qualquer em que a vida vinha inteira parecia querer entregar-se às coisas pequenas, entrou no café da esquina para beber um café ou uma água. tinha agora esplanada, nesta nova cidade repleta de luz, e havia pessoas nas mesas lá fora conversando entre si, outras com os seus cães, com boinas, telemóveis, cafés e cigarros, com e sem fumo, headphones. a intenção perdera-a ao entrar, mas fez à mesma sinal ao empregado: um café, por favor. era um pretexto. talvez ali estivesse unicamente para ver entre os tectos e as mesas aquele desenho feito de subtis linhas semi-transparentes, que replicava os efeitos das paredes num jogo de reflexos de luz e profundidade. ou então para se aproximar da experiência da duração, à medida que os velhos e as velhas que chegavam do lar se iam juntando o mais demoradamente possível, num contínuo de gestos tão lentos que já eram apenas gesto, pura dança, num dos cantos da sala, para o almoço. saiu como quem sai depois de beber um café ao balcão, com a sensação de tarefa cumprida, ainda que parecesse fazer tudo parte de um esquema para poder observar o real de pleno direito, colando-se a ele como a um habitat, para não cair, como a carraça ao mamífero ou a lapa à rocha. lá fora, uma nuvem tinha descido à rua, tornando-a branca e suave, como num sonho. o nevoeiro adensava-se. viu-o aglomerar-se por entre as árvores da floresta. sentiu no seu próprio corpo essa propriedade especial e estranhamente espacial de dar provisoriamente corpo a um vazio. um corpo subtil mas concreto. fecundo vazio que não se pode ver, mas que de uma maneira ou de outra teremos todos de atravessar. sentiu-se atravessar pela sua insistência nua, o elemento húmido, a disposição melancólica. mas é tão fugaz e tão limpo, desaparecer do nevoeiro, não deixa traços. ficando apenas o desejo subtil e abstracto do atravessar e do ser atravessado.

26 out 2017

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

 A água cai em cordões verticais e vivos, cantando. Cria-se uma nova, ou muito velha, solidão, onde o súbito gosto da pureza se mistura ao temor. A água é uma matéria em si própria delicadíssima e exaltante. Talvez os homens desejassem estender-lhe as mãos, voltando-as de todos os lados, para ficarem bem molhadas. É uma água vasta e nua, maternal.
 As casas tornam-se muito isoladas, a uma severa distância umas das outras. Não é tempo de comércio entre as pessoas, de qualquer espécie de fraternidade. Sabe-se pouco a respeito da água da chuva. É esta uma ilha estéril, fechada em cal e areia. Há as estiagens. E então sucede o absurdo. O talento do absurdo é criar o excesso. Por isso cai às vezes uma chuva avassaladora. A carne concentra-se para a receber, e aceita-a.
 Poder-se-ia sair das casas, e não somente estender as mãos à grande chuva, mas deixá-la mesmo encharcar as roupas e a pele, limpar o homem de uma porção de coisas que não prestam. Seria possível andar nu debaixo da água cantante, as próprias pessoas cantando com alegria e terror sagrado. 
 Mas cada qual se encerra na sua solidão. Liga-se às vontades celestes por uma comoção enigmática.
Os caminhos confundem-se, os telhados de terra batida alem, o enxurro ganha os campos. Desaparece essa frágil ordem que se cria para andar sobre os abismos. Em dois dias perdem-se todas as pistas do ano. Desapareceram os centros da vida, centros de audaz inteligência, onde se teceu, à volta, o pavor da morte - a malícia de enganá-la e a pequena vitória com seu anel de alegria. Absorveu-os a água.


(de: uma ilha em sketches. Herberto Helder)