segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

a mim



e se um bicho me encontrar, se algures me encurralar, se uma gente me ouvir, se um café me engolir, se um som me gritar, se um bando me expulsar, se uma pedra me segredar, se uma formiga me fitar, se um vento me arrastar, se uma nuvem me cobrir, se uma forma me cercar, se uma escrita me ferir, se um grito me ensurdecer, se uma cor me iludir, se uma ideia me perseguir, se uma filha me esquecer, se uma linha me anular, se um ponto me parar, se uma fonte me secar, se um sopro me sufocar, se uma imagem me matar, se alguém me esperar.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

vizinhos

gritaram. gritaram tanto que, depois dos gritos, não parecia possível tudo estar ainda, assim tão precisamente, nos seus lugares. gritaram tanto que depois de cada grito havia uma espécie de solenidade, de zona sagrada, de silêncio absoluto que por vezes parecia tornar-se visível na imagem, talvez de infância, do poço, do eco do grito que vinha de dentro dele e da possibilidade da queda para o lugar de onde brotava esse eco, se nele se abeirassem de vez. esta imagem convinha, talvez, porque parecia haver sempre dois gritos, o grito grito e o seu duplo grito, esse eco que é em si apagamento, arrastado, prolongado, esvaído e sereno, mas que se aproveita até ao último murmúrio. gritaram tanto que havia nesse silêncio depois do grito, mas também antes, uma estranheza não desagradável mas desconfortável, como quando se ouvem os gritos dos nossos vizinhos, de dor, de prazer, e não resta a fazer senão uma certa contemplação. tornaram-se os vizinhos de si mesmos, que curioso, assim entre um grito e o outro.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

um charme



alguém dizia que esta minha tendência em espalhar-me pelo espaço como faço quando estou em algum lado, em que vou espalhando os objectos que trago comigo, até que, aos poucos, há marcas minhas um pouco por todo o lado, que esta tendência fazia parte do meu charme... espalhar em cima da mesa. espalhar pela sala. aqui, um lenço, ali o saco, depois, ali no canto, o telemóvel, uma caneta, etc. até na praia acontece, ou no campo. não tenho só um montinho com as minhas coisas. há um momento em que já são dois, e se for preciso três. consoante as deslocações. parece que preciso de fazer um pequeno mapa por todo o lado, até no café da esquina, se mudo de mesa ou assim. é um movimento de dispersão, de proliferação, de repetição. de territorialização e de desterritorialização. de marcação, como a urina dos cães, dos gatos, pelo espaço, mas também de fuga. os animais não têm é tanta tralha, só o que está agarrado ao corpo. na verdade isto nunca me incomodou muito, provavelmente porque não reparo, não vejo de fora. se é um charme, não é meu. já o vi noutros, este charme. não é meu. sobretudo é qualquer coisa que acontece no decurso de uma maneira de viver o espaço e o tempo, as relações com as pessoas, com as coisas. mas se me der conta de uma aparente ocupação na folha de papel, se vejo tudo ocupado pelas minhas palavras, fico agoniada e com vontade de ver tudo vazio. surge esta urgência de criar vazio. por ser um espaço-tempo abstracto, a folha branca pode tão facilmente deixar-se ocupar inteiramente por mim. é preciso torná-la concreta, fazer dela um espaço da vida. da vida que nunca é nossa.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

r u p t u r a


como descrever a ruptura, o facto da descontinuação. esse esvaziamento dos contextos. esse apagamento dos traços, a multiplicação de sentidos, duplos, enigmáticos. tudo é subtil. um marulhar de hesitações. o tédio, o estado de enfraquecimento crescente. subitamente os pormenores que nos captam, mesmo na queda.