terça-feira, 27 de março de 2018

Não guardes




não guardes por muito tempo o amor, esta dor, o sofrer, o chorar, sob pena de deixares de conseguir respirar, cuidar das feridas, e de perderes por completo a ideia do tempo que nos devora, deixando que te devore de um só trago. doce e perigosa ilusão, a das palavras. no princípio é doce, depois terrível: o amor, esta dor, o sofrer, o chorar. doce máscara, rosto que se quer possuir. o maior perigo, a intenção. não é nas palavras, mas em seu redor, nalguma coisa que resiste a isso que pretendem designar, que está o sopro vital: vem do abismo, emerge e vem à tona, mas quase sempre sem querer. é preciso aprender a escutá-lo, esse não dito pelas palavras que subsiste em seu redor. isso mesmo que o amor, esta dor, o sofrer, o chorar se recusaram a dizer quando ditas, que a mancha, o lamento, a impressão sem contornos disseram numa língua incompreensível que lá ao longe, por vezes tão longe, se fez notar. só as correspondências redimem. se palavras confusas se soltarem como que por lapso, não te importes, transportarão com elas um pouco do abismo que nos ecos da distância se deixará porventura reconhecer. 

sexta-feira, 23 de março de 2018

Apesar de tudo, por vezes é preciso guardar o prato rachado na despensa, é preciso mantê-lo como peça do serviço doméstico. Nunca mais poderemos voltar a aquecê-lo no forno nem voltar a misturá-lo com os outros pratos no lava-louças; não irá à mesa quando há visitas; mas será usado para pôr as bolachas das horas escusas da noite ou para guardar sobras no frigorífico.

Fitzgerald, The Crack-up (1945)
o andar de uma pessoa que se vai embora é a alma da conversa que teve com outra.