e veio a chuva, muita chuva, inesperadamente, apesar da nuvem negra e pesada a norte o indicar. e eu que já não esperava nada de novo por hoje e nem nos próximos dias. se os dias se repetem indefinidamente iguais, desconfio que não seja vida. mas ela surpreende, assim, na mais singela gota de chuva, e vem outra vez esse hábito um pouco terrível de uma muito vaga esperança. também nos sonhos me visita o inesperado, por mais recorrentes eles que sejam, como o de voar - ou será melhor dizer pairar - por cima dos lugares, com todas as suas variações, desde o sonho em que há a minha decisão de voar, que efectuo por vontade, de fugir ou de outra coisa qualquer que agora não sei identificar, até à gradual constatação de que estou a ficar mais leve e começo a pairar e depois a subir a subir, de braços abertos como que para me equilibrar, e a ver tudo de cima, à distância e sem enquadramento possível, sem contornos ou com contornos sempre móveis. por vezes já não voo há tanto tempo que o medo de não o conseguir fazer me toma, como quando deixo de andar de bicicleta durante tanto tempo e temo já não saber como. mas, tal como se diz que nunca nos esquecemos como se anda de bicicleta, assim acontece com o voo. e há aquele outro sonho recorrente, o das casas. varia indefinidamente, claro, é feito de muitos sonhos e de muitas casas, umas em que vivi efectivamente e outras que só nos sonhos habitei, mas na maior parte são verdadeiras misturas de umas e outras. dei-me conta, ao mesmo tempo que suspirei de alívio com a torrente de chuva e a força das gotas no vidro do carro e depois no corpo, quando saí para me molhar, que não são só as casas onde vivi que afectam as dos meus sonhos, mas que as casas dos meus sonhos determinam os espaços em que estou. aconteceu, por exemplo ainda há pouco, a escorrer água, entrar num pequeno café onde nunca entrara antes e conhecê-lo tão perfeitamente, de sonhos seguramente, saber exactamente o canto para onde queria ir, sentir-me em casa.
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