sexta-feira, 12 de maio de 2017

jogos


todos teremos talvez experimentado, em crianças, essa fase em que queremos saber quanto tempo aguentamos sem respirar. cronometramos e experimentamos suspender a respiração até não aguentarmos mais: debaixo de água ou de uma almofada. é um pôr-se à prova, um exercício de aproximação a essa estranha imobilidade, uma espécie de jogo de suspensão da vida. talvez fosse um pouco o mesmo que procurávamos, eu e o meu irmão, quando nos fingíamos de mortos. não só para assustar os adultos, mas para pôr à prova quanto tempo aguentávamos parar os movimentos da caixa torácica e os minúsculos movimentos do corpo, do rosto, apreendendo também, aos poucos, qualquer coisa essencial, sobre o sentido voluntário e involuntário das nossas acções e decisões corporais. e se numa esquina qualquer, a meio dum percurso quotidiano, um espaço enquadrado de maneira aparentemente arbitrária nos aparecer com tantas perspectivas diferentes que se torne impossível ver, produzindo-se um descentramento tal que a escolha se torne inviável, imponderável, inescrutável? produz-se uma suspensão do sentido das coisas, uma imobilidade, e voltamos a essa espécie de jogo originário da infância. uma síncope, uma pequena morte em vida. e outra vez esse jogo: quanto tempo aguentas nem morto nem vivo? a decisão acabará fatalmente por vir, tão natural quanto desesperadamente, como o sopro de ar que se inspira quando não se pode mais sem respirar.  inúmeras são as vezes em que não há escolha, mas antes minúsculas decisões involuntárias, advindas de jogos deste tipo. qual a margem, o limite, entre a escolha e a decisão? acender ou não o cigarro, atravessar ou não com o sinal vermelho, calçar ou não estas meias, aceitar ou não um lapso de linguagem que pode determinar como se vive. há qualquer coisa simultaneamente anódina e dramática nestas pequeninas decisões: a certeza inconfessável de que não são mensuráveis. quero os dois livros que folheio na livraria. só posso levar um, mas quero os dois. levo este. não necessariamente porque me interesse mais. por vezes a dimensão, o material, a relação táctil entre o livro e a minha mão, qualquer outra coisa alheia ao livro em si. dos dois indivíduos a quem me posso dirigir para o comprar, dirijo-me a um e não ao outro que até estava mais próximo de mim, terá sido aquele seu minúsculo gesto facial com o sobrolho direito, terá ele captado a minha atenção? que estranha atenção esta que nos habita, uma atenção esburacada, que ao mesmo tempo nos agarra e faz cair. 

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