quinta-feira, 16 de março de 2023

Da ambiguidade

a ambiguidade tem pouco interesse como recurso estritamente estilístico. quando tomada nessa acepção torna-se também perigosa. a ambiguidade de um gesto impensado, de uma palavra dita, de uma relação, a ambiguidade entre pessoas, imagens, acontecimentos é algo como um espaçamento, brecha ou racha que não deixa que um sentido único se atarrache ao acontecimento como se fossem um frasco fechado. há uma folga que marca a diferença absoluta entre o acontecimento e o seu sentido. amplificar ou reduzir esta brecha é qualquer coisa de que todas as poéticas se têm ocupado. cada zona de ambiguidade estética tem como seu correlato uma zona de ambiguidade ética. achar que a ambiguidade de uma imagem ou de uma situação é interessante porque podemos ler um acontecimento de muitas formas diferentes leva a pouco mais que uma variação moderna da torre de babel. tomada nessa acepção estaremos sempre no âmago puro e simples da linguagem, com ou sem entendimento, feita de esperanto ou das múltiplas línguas de babel. a ambiguidade está fora da linguagem, mesmo se a linguagem dela depende, definindo-se justamente pela possibilidade de dar conta do contacto com o acontecimento no momento da aproximação existencial ao próprio acontecimento e não a partir da sua leitura.

sexta-feira, 10 de março de 2023

Perder o pé, a alma adora nadar

Andar pela areia molhada, os pés a enterrar, quando enterram demasiado a sensação deixa de ser de conforto e assusta um pouco, como se a terra dissesse baixinho, um dia engulo-te. Rebentação. Massagens agradáveis com força moderada das ondas a rebentar contra o corpo. Avanço, quero tirar os pés da areia e mergulhar, no momento da crista da onda, que é como gosto, imediatamente antes da onda começar a rebentar. Mergulho em direcção ao fundo e saio do outro lado da onda. Repito vários mergulhos à medida que as ondas avançam. Sinto o nariz a arder. O gosto a sal na boca. Vou avançando até perder o pé. Já o perdi. Pequena sensação de euforia. Passamos a outra fase. Adeus terra, agora sou eu e a água, como no útero, outra vez, ou como num daqueles rios do submundo das antigas histórias gregas, o letes ou o estige, esquecimento ou invulnerabilidade absoluta. "A alma adora nadar", palavras de Michaux. Perder o controlo do corpo. É a alma que nada. O horizonte é estupendo.

Distância

Uma criança ouve as palavras trocadas entre duas mulheres. Uma delas afasta-se. A criança aproxima-se da mãe: porque estavas a dizer à tua amiga, que ela estava distante, se ela estava mesmo ali ao teu lado? Olhando para o filho, que a fitava à espera de uma resposta, a mulher sorri um sorriso ao mesmo tempo incomensurável e contido (nesse sorriso talvez estivesse a resposta mais exacta que se pudesse encontrar para aquela pergunta) e prepara-se para tentar uma explicação. Mas entretanto a criança tinha fugido, a correr, atrás de um cão.
cada vez me interessam mais os diálogos entre pessoas. no cinema, na vida, na literatura. um diálogo que ocorre antes de mais em nós, numa necessidade urgente de divergir, dissociar, diferenciar, distanciar. para ver alguma coisa disso que se está a sentir. nos diálogos mais interessantes, mais do que encontros, há tangentes, aproximações, silêncios que contrastam com torrentes de palavras sem significado particular. nas conversas que temos uns com os outros percebemos que existe, para lá de uma troca de informações corriqueiras sobre a vida, sempre, uma necessidade de expressão meio confusa. uma vontade de falar com o outro, em que o outro nem é bem o outro e nós não somos bem nós, porque há este impulso de sair de nós, de nos distanciarmos de nós mesmos, o gesto da interlocução cria sobretudo um lugar fora dos interlocutores. um lugar especial. podemos amar profundamente o nosso interlocutor, dizer-lhe alguma coisa ou querer ouvir alguma coisa. por vezes uma coisa concreta, muitas vezes uma coisa abstrata, um silêncio, vazio. mas as conversas acabam por ser verdadeiramente feitas de tudo menos aquilo que se tem para dizer. as hesitações, as palpitações que se sentem de repente e fazem repentinamente o assunto, pequenas forças que não sabem manipular e nos influenciam, essas sim, conduzem as conversas, tornando-as não só inacabadas como ainda não começaram. estamos sempre para começar a conversa, na fala, mas ainda não na conversa a que aspiramos. balbuciamos por vezes coisas desconexas, ouvimos-nos e experimentamos um começo. parece que é isso que as conversas têm de especial, esse começo.