sexta-feira, 28 de abril de 2017

sair, sair agilmente, subtilmente, gentilmente, sair. sim sim. abandonar a terra, o país, o lugar, o café, a esquina, o vão de escada, a cama, a sala. abandonar o espaço. rápido. antes que o gesto te exceda, antes que fale, antes que venha assim em bruto, cheio de real, com os seus fantasmas, duplos, reflexos, a transbordar matéria.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

como se estivesse em agosto

Estou todo no mês de agosto
Estou escarranchado no lombo nutrido de agosto
sentado à mesa de um café envolto no manto de múltiplas vozes
olhando pela janela uma toalha de mar e a terra ao fundo
debaixo do céu azul e branco do sol e do vento
café e vozes céu terra e mar tudo coisas talvez de agosto
objectos que o deus deste mês se porventura dada a fartura houver também um deus para os meses
utiliza para que assim toda a gente possa falar univocamente de agosto
e agosto não seja o nome frio dos números
mas seja um tempo e a orla da água que banha os pés desse tempo
e as coisas que existem na mão aberta desse tempo
Agosto não é o oitavo mês do ano
as férias há muito previstas e marcadas o sítio
de certos rostos por um instante resplandecentes mas cedo bebidos pelo esquecimento
talvez para o ano vindos na vaga de um novo mês de agosto
Agosto são muitos jornais vagarosamente lidos
de páginas uma a uma passadas como os trinta e um dias deste mês
agosto é o espaço do pensamento da boca boquiaberta
do sol outra vez usado como o único relógio de pulso
Agosto é o regresso dos emigrantes o mês da morte na estrada dos emigrantes
de uns homens que antes eram portugueses e hoje são emigrantes
e voltam a estas paragens como as aves às terras serenas e avaras do norte
Agosto é a estrada estreita que o mar enfia nos campos
como faca que fura sebes de canas campos de couves
e ensombra ainda um pouco mais a sombra de certas árvores
Agosto é eu estar aqui é trazer as mangas arregaçadas
é envelhecer ao sol na dispersão distraída de determinados gestos
é saber que estou de momento separado de secretárias com muitos problemas em suspenso
que me sento numa pedra e oiço uma música e reconheço a minha forma mais frequente de me sentir vivo
embora depois complique o que sinto e diga talvez que me sinto feliz
Por vezes agosto é o nevoeiro essa espessura de certa maneira branca
que me faz pensar que penso e achar que há uma certa profundidade no que por vezes penso
nevoeiro que mora um tempo na minha cabeça e depois
desce até às páginas do livro que leio de maneira diferente
dos livros que leio nos outros meses do ano
Agosto não é a pura palavra não é determinada designação para um tempo
onde cada uma destas coisas anualmente se encontra comigo
Agosto são talvez estas palavras todas onde me perco onde procuro pôr os meus passos
onde afinal penso que permaneço um pouco mais do que no frágil edifício dos dias
Não escrevo neste domingo de agosto onde já houve sinos
e há gestos diferentes dos mesmos gestos que fazemos nos outros dias
Estou um pouco nestas palavras na própria
palavra agosto que ponho sobre o papel
e que embora aponte para agosto não é esse mês de agosto
Estou em agosto estou um pouco em agosto

(Ruy Belo, "Toda a Terra", Obra Poética de Ruy Belo, Vol. 2, Editorial Presença, Porto, 1981, p. 171)

sábado, 15 de abril de 2017

meditação

a sensação confusa do odor da terra molhada, dos relampejares coloridos vindos de algumas flores (vindos ou na sua direcção?), de algumas cores. a diferença, excessiva, entre dois amarelos, dois brancos, dois azuis, pura potência de cor. o passo a fundir-se com a terra para se diferenciar intensivamente tornando-se terra. toda a terra o meu passo, o meu amor, a minha dor. não saber descrever a diferença, de grau, intensa, evidente e trémula. mas aquilo que a cabeça não pode enunciar, a tua pele já sentiu mais do que uma vez.

terça-feira, 11 de abril de 2017

...que les autres rêvent, c’est très dangereux, et que le rêve est une terrible volonté de puissance, et que chacun de nous est plus ou moins victime du rêve des autres, même quand c’est la plus gracieuse jeune fille, même quand c’est la plus gracieuse jeune fille, c’est une terrible dévorante, pas par son âme, mais par ses rêves. méfiez-vous du rêve de l’autre, parce que si vous êtes pris dans le rêve de l’autre, vous êtes foutu.

(Deleuze, Qu'est-ce que l'acte de création?)




devolução

trago tantas pedras e conchas da praia. guardo-as em taças. uma delas, que comprei há muitos anos numa feira da ladra, com uns desenhos verdes, que parecem algas, numa cerâmica amarelada pelo tempo, partiu-se pouco tempo depois de a comprar. com a colagem dos fragmentos e suas falhas, ainda mais apta se tornou a guardar as conchas e as pedras, que precisam de alguma aragem. tenho várias taças e chávenas que, depois de se partirem, adquiriram este estatuto quase religioso, para lá do uso quotidiano que um dia tiveram, do dar de beber ou de comer. as pedras e as conchas, no entanto, amontoam-se e talvez se sintam deslocadas. há uns poucos anos, numa das minhas descidas às profundezas do mar, que é isso que sinto quando colho pedras e conchas, prometi a um rochedo que as devolveria, quando já não precisasse delas. retirava-as do seu contexto natural, prolongava-lhes até um pouco as suas belas formas, enquanto as guardasse numa das minhas taças refeitas de pedaços, mas voltaria a deixá-las no mar. e numa manhã de chuva mas sem chuva e tão branca como fria, achei que era tempo de voltarem à praia, para que pudessem desfazer-se em areia com a implacável erosão marítima, seu destino e natureza. retirei uma a uma, cada pedra e cada concha, da minha taça de algas verdes feita de pedaços, que ficou estranhamente esvaziada. por momentos achei que mais valia levá-la também para a praia do que deixá-la sem as suas conchas e pedras. mas não era lá o seu lugar e deixei-a ficar, em cima da mesa, assim com as suas rachas do lado de dentro bem visíveis e expostas ao vazio.