domingo, 4 de novembro de 2018

Pequena colher de pau


Vive com outros talheres já há muitos anos numa gaveta da cozinha de uma cidade branca e é frequentemente usada. É um palmo de pau, escurecido do uso e do tempo. Mexe muitos ovos e outros alimentos cozinhados na frigideira. É tão pequena que quase não é usada em panelas ou em tachos. E guarda na sua matéria porosa e húmida tantas imagens. Os mergulhos naquela lagoa de águas límpidas onde jazia uma aldeia submersa e depois cozinhar o arroz de salsicha no pequeno tacho amolgado (por onde andará?), contigo a proteger do vento a chama do minúsculo campingaz azul (que banquetes saiam dali ou como a fome constrói palácios), o orvalho de maresia das praias rochosas, o amontoado de coisas, o suor, o calor quase insuportável da velha tenda. Também as nossas vozes. Todas estas imagens, na matéria tão viva como antes da pequena colher de pau, enquanto ela durar.

domingo, 23 de setembro de 2018

temos de falar do tempo

urgente: constatar (sentir) a lógica de composição (não inteligível) para chegar às coisas, chegar à visão.

(visão) feita de exercícios de composição. aproximações, deslocamentos, contacto. procura do sopro (ritmo).

(ritmo) sopro, ondulação, humidade, frio, calor. chuva. a ocasião como modo temporal. o tempo que faz e se faz sentir (falta-nos a palavra em português, weather, em inglês).

chove realmente. ficamos ensopados. tempo como corpo ensopado. podemos prever (ler os sinais), podemos esperar a chuva, mas não podemos saber absolutamente nem se a chuva vem nem quando e nem determinar as suas causas exactas.

se cai chuva é tudo chuva e nada é chuva. somos tão impermeáveis (são já tantas as invenções, depois da casa...) e no entanto nada escapa à influência subtil da chuva torrencial ou do chuvisco.

e então temos de falar do tempo, do tempo que nos toca, desse tocarmo-nos, eu e tu e nós.
que é como quem diz que temos de dizer, no tempo que ao passar tudo quer engolir, coisas que nada querem dizer senão o dizer que nada diz (só o gesto de dizer).

parece que vai chover, amanhã (não achas?) sim, sim, parece que vai chover  (cá estou. cá estamos) sussurraremos ou gritaremos ao telefone: alô, estás a ouvir-me? temos de falar do tempo, parece que vai chover.

emergência de palavras silenciosas, como malas cheias de um desejo de ocupar um lugar, de tocar um chão, a tua mão. palavras-mão.

temos de falar do tempo (como o vento venta ou como a chuva chove).

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

manhã

dia de semana, nove horas da manhã. desço a avenida de carro, já a conheço bem, é ladeada de umas árvores que a escurecem um pouco, talvez carvalhos. fico sempre maravilhada com as suas folhas em movimento, os raios de luz entre os ramos escuros e os desenhos das sombras na estrada de alcatrão. a avenida seria um pouco sombria, até, não fosse o movimento rotineiro e a força dos contrastes. se os sentidos ainda dormiam, o seu despertar é intenso e demora poucos minutos, primeiro uns ziguezagues ao descer a rua, que são muitos os carros encostados em segunda fila e um taxista a mostrar as suas habilidades passa quase de raspão. desço mais um pouco, fico parada no trânsito. do meu lado direito um imponente veículo rebocador amarelo, com um enorme gancho para agarrar. não consigo evitar, quero olhar demoradamente para os seus pormenores, adoro todo o tipo de guindastes, mas logo a minha atenção é puxada para outro lado, mesmo à minha frente: um sujeito vestido de branco abre a porta traseira branca de uma carrinha branca de transporte de carnes. lá estão elas, penduradas nos respectivos ganchos, assim na vertical, baloiçando com ligeireza. penso nessa estranha comunidade onde se encontram os restos do que outrora foram espécies de vida diferentes: porcos, patos, vacas, galinhas, cujas carcaças, reunidas em série, pertencem agora a uma nova colecção de um outro mundo no mesmo mundo. reparo nas riscas brancas de gordura e nas costelas de um animal que não sei reconhecer. lembram-me as minhas costelas. algo perturba bruscamente o fluxo de associações livres, uma náusea, a sensação do odor a bedum. troco sinais faciais com o motorista do autocarro à minha esquerda. está impecavelmente penteado e barbeado, sorri e faz-me sinal que avance. reparo no brilho gorduroso da pele do seu rosto pálido, misturando-o com a visão das carnes. ainda um pequeno desvio: passar numa rua com nome de arbusto onde há muitos anos morei e repetir o gesto já costumeiro de me deixar ficar por instantes, junto ao prédio, a observar a varanda do segundo direito, verificando, com espanto, que as persianas de palha desses tempos remotos ainda estão nas janelas da casa onde morei.

domingo, 27 de maio de 2018

A actividade muscular de um cidadão que segue calmamente o seu caminho durante um dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que uma vez por dia sustenta um peso enorme; isto foi comprovado fisiologicamente e é provável, também, que as pequenas actividades quotidianas, na sua soma social e nessa sua capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia no mundo do que as acções heróicas.


Musil, O homem sem qualidades

domingo, 29 de abril de 2018

Agosto

estar um pouco no mês de agosto, ou setembro...
nada é comparável ao agosto da nossa infância. as férias do verão, a praia e o mar, a luz, o corpo que eram uma coisa só, um acontecimento que se ia desenrolando em praia, corpo a rebolar na areia, depois enterrado na areia molhada, depois ao sol, as uvas misturadas com areia, calor extremo na pele, a queimar, antes do mergulho no mar, a família, os amigos, os encontros. é verdade que vivendo-se nem que seja por uma temporada de férias perto do mar, há uma metamorfose qualquer, uma troca elementar entre essas coisas todas, a pele dos corpos que fica mais salgada e escurece, as rochas, a brisa das noites longas que parecem não ter fim, os elementos minerais, aquáticos, terrestres, os cheiros todos misturados com o calor que a terra emana. mas não é como o agosto da nossa infância, de gestos sem finalidade à vista para além do seu estar sempre meio inebriado, demasiado lentos ou demasiado eufóricos, gargalhadas só porque apetece, toda essa mistura de sensações que bebemos na mão aberta de agosto. que será que marca tão intensamente o agosto da nossa infância, que não volta a repetir-se, pelo menos não por inteiro. mesmo se voltamos àquele esconderijo, àquela rocha naquela praia, àquele canto da casa perto da varanda, onde nos sentávamos a apanhar uma nesga de sol a comer nêsperas. a nossa experiência desses lugares será sempre a da infância, apesar de todas as outras vezes que voltámos aos mesmos lugares, a terceira e a quarta e tantas outras. será que só a primeira vez é singular, porque à segunda já não vivemos a experiência num estado virgem qualquer, como um mundo para ser vivido, uma realidade objectiva naquele espaço e naquele tempo? será que da segunda vez e da terceira e da quarta já não vivi objectivamente a realidade por tê-la já, em parte, em mim, dentro de mim e interiorizada? será que pouco a pouco deixamos de viver objectivamente esses mundos todos que há para viver porque já temos o nosso mundo em nós, o mundo todo em nós? o inferno interior do próprio mundo. talvez na infância o mundo fosse sempre estrangeiro e nunca próprio, sempre um saltar para fora de si, um mergulho para outro sítio, uma caminhada alhures. e talvez a infância não conhecesse o tempo, ou pelo menos o tempo interior que tudo envolve num horizonte circunscrito a um antes e a um depois, em que o agora desapareceu. talvez a dada altura, algures no início da nossa juventude, uma certa maneira de viver o tempo venha a nós (ou nós a ela) e transforme por completo a nossa experiência e então marca-nos sobretudo o princípio e o fim do verão, a intensidade das banalidades desconhecidas mas excepcionais do agora é substituída pelos igualmente intensos momentos de expectativa e de angústia. momentos de puro tempo subjectivo. passamos de repente a viver intensamente o antes do agosto começar e o antes do agosto acabar. a expectativa e a terrível angústia. vivemos a morte das férias, a nossa morte. o fim do verão, como que numa lenta agonia. na infância as férias chegavam de repente, terminavam mais ou menos abruptamente, estávamos fora do tempo ou num tempo que só tinha o meio e nunca o antes e o depois e sempre ocupados com outros mundos. agosto era inteiro e nós inteiros no mês de agosto, "escarranchados no lombo nutrido de agosto"...

quinta-feira, 26 de abril de 2018




pura potência. não é uma questão de força corporal, nem mental .não tem nada a ver com a imaginação. acontece noutros lugares, que passam entre os imaginários e os nossos eus. espécies de ilhas, traçadas às cegas, que por um estranho movimento de repetição circunscrevem uma zona intensiva no imenso deserto, feita de linhas, traços que se escrevem sem qualquer tipo de linguagem. mas sempre essa espécie de baloiçar, sem nenhum fim para lá do movimento infinito que nunca se cansa, como o andar à roda da criança, no momento em que o jogo se ultrapassou em direcção a nada. o que é? o que é que a estava a agarrar quando estava quase no abismo, antes de cair? dança obstinada, ensimesmamento ausente, exterior. puro ritmo, bruto.

quinta-feira, 19 de abril de 2018



n-n-não s-ssaber q-quaando será a ho-ho-ho-ra. n-n-não p-po-der, po-po-der v-ver. r-romp-per o d-dia ou-outra vvez s-sem s-saber. te-ter f-fo-mme e nnã-o t-ter co-co-mo co-me r. i-ma-gi-n-nar, dde-ntro po-dde-r i-ma-gi-n-ar, dde-entro. pôr u-um p-pé de-po-poiss d-do pé e pass-o de-pois de pa-paa-sso avançar ppp-pou-co, m-mmmas avan-çar s-sem o-o-olhar, à-às c-cegas.  g-gosta m-m-mais c-com o-os o-o-lh-os fe-fecha-do-dos. po-por-que p-poss-o im-ma-gi-n-ar. n-n-nunca m-mais vi-viu o-o sss-céu, n-na-da lá pra ci-cima, s-só o ch-chão, s-só o ch-chão a-a-abrir-brir-se.


terça-feira, 27 de março de 2018

Não guardes




não guardes por muito tempo o amor, esta dor, o sofrer, o chorar, sob pena de deixares de conseguir respirar, cuidar das feridas, e de perderes por completo a ideia do tempo que nos devora, deixando que te devore de um só trago. doce e perigosa ilusão, a das palavras. no princípio é doce, depois terrível: o amor, esta dor, o sofrer, o chorar. doce máscara, rosto que se quer possuir. o maior perigo, a intenção. não é nas palavras, mas em seu redor, nalguma coisa que resiste a isso que pretendem designar, que está o sopro vital: vem do abismo, emerge e vem à tona, mas quase sempre sem querer. é preciso aprender a escutá-lo, esse não dito pelas palavras que subsiste em seu redor. isso mesmo que o amor, esta dor, o sofrer, o chorar se recusaram a dizer quando ditas, que a mancha, o lamento, a impressão sem contornos disseram numa língua incompreensível que lá ao longe, por vezes tão longe, se fez notar. só as correspondências redimem. se palavras confusas se soltarem como que por lapso, não te importes, transportarão com elas um pouco do abismo que nos ecos da distância se deixará porventura reconhecer. 

sexta-feira, 23 de março de 2018

Apesar de tudo, por vezes é preciso guardar o prato rachado na despensa, é preciso mantê-lo como peça do serviço doméstico. Nunca mais poderemos voltar a aquecê-lo no forno nem voltar a misturá-lo com os outros pratos no lava-louças; não irá à mesa quando há visitas; mas será usado para pôr as bolachas das horas escusas da noite ou para guardar sobras no frigorífico.

Fitzgerald, The Crack-up (1945)
o andar de uma pessoa que se vai embora é a alma da conversa que teve com outra.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

andávamos tão longe.
quando?
ainda agora, há pouco, antes de nos reencontrarmos.
sim, pois era.
andávamos por aí. é preciso, andar por aí.
sim, pois é.
mas agora estamos perto. muito perto desse lugar onde queremos estar.
estamos. tão perto. já nem o vemos.
sim. só se consegue ver a uma certa distância.
aqui não é para ver. é tudo absoluto ou é para ver loucamente e ouvir absurdamente e sentir insuportavelmente.
até termos de fugir.
porque não te perdes aqui?
não sei se nos podemos perder a dois. perdemo-nos um ao outro, reencontramo-nos um ao outro, voltamos a perder-nos e a reencontrar-nos um ao outro.
tens razão.
não nos perdemos de nós mesmos.
então vai.
vou.
desejo-te a melhor perdição.
sim, e eu a ti.
até ao nosso reencontro.
sim, até lá.
mas não vás já, vamos dormir juntos um bocadinho, está muito frio.
sim, vamos. 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

bom dia, é o costume?


entre uma e outra trinca na torrada de mastigação tão barulhenta, estende-se um rio sonoro feito de inumeráveis matérias de vários feitios. despeço por um momento os olhos. uma voz feminina televisiva relata notícias ... espanhol... o caso já considerado... uma operação... as unidades de protecção ambiental.... outra voz televisiva, o mesmo tom. mais perto da minha mesa uma espécie de sussurrar, a voz muito baixa, que se parece com um grunhir, esforça-se por articular essa coisa estranha a que chamamos palavras. passos. o som do balcão é o enorme reservatório, é de lá que tudo vem e onde tudo vai dar. tilintar de colheres no vidro, som do exaustor da máquina de café, outro que se assemelha a uma torneira a correr água, chhhhhhhhhh, um ritmo dado pela batida, geralmente três vezes, que o empregado faz quando deita fora as borras velhas de café para tirar o outro café. toctoctoc, tatatatatata, panampanpam. bom dia, é o costume? cadeiras a arrastar-se. passos. momento publicitário da tv e música... não consegues pagar? vá lá, desculpa lá...  mas quando?... há um ano e tal... está mesmo mal. aconteceu-me o mesmo, só que é nas costas... risos. pois, pois.... manteiga?... entra a máquina do café, toctoctoc e a água a correr, chhhhhhhhhh, e logo depois o tilintar das colheres pequeninas, ...obrigada à mesma, obrigada, sabe, era para a minha afilhada, obrigada à mesma... sai uma merenda prensada e uma meia de leite, mas para ontem! ... é que a mãe já tratou do assunto... o som do autocarro passa mesmo à porta e abafa por momentos a avalanche nebulosa de sons. o suminho de laranja já está a sair, sim?... a inquilina pode e deve, repito... são tratamentos muito eficazes. cadeiras a arrastar-se. passos. tilintar de vidros, desta vez os pratinhos. digo-te, ela é igual à minha neta, não é por ser minha neta... os cabelos, os olhos, tudo... olha quem vem lá... bons olhos a vejam... um riso estridente parece furar o tecto e o rio de sensações sonoras adquire uma violenta crista. mas é fugaz. entretanto, pequeninas impressões, quase imperceptíveis, procuram reunir-se, compactar-se em grupos e criar uma espécie de onda sonora que se autonomize... mas eu pedi sem manteiga... são gestos sonoros nascituros, tentativas de separação, ínfimos sons que procuram escapar da corrente, estão às portas da consciência, às portas da vida e da morte. mas não chegam a destacar-se. ficam indistintamente no ruído de fundo, hão de sucumbir, sem chegar a existir, meras promessas sonoras ...e vai querer o quê? médio ou cheio?... toctoctoc, tatatatatata, chhhhhhhhhh. então vamos ter um menino, é? ... olá, bom dia... as taxas de glicémia aumentam... não, não, eu queria uma menina...  até logo, adeus obrigada, olhe o troco! ...eu acho que sim. quantos são? ai é? ahn?... o rio, a polifonia sonora da lorena continua enquanto arrasto a minha cadeira para me levantar ... desculpe, estava a olhar para o vazio, às vezes dá-me isto... é a continha, é? ...ai não, eu só gosto deles cozidos. tilintar dos pratinhos e das chávenas... bom dia, queria... ai já não quer? ... dois pães de mistura e quatro pães pequenos?  ... noventa e cinco cêntimos. uma bica cheia....toctoctoc tatatatatatata chhhhhhhhhhh.... então vá, até amanhã.



JLGodard. Vivre sa Vie



quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

quando me ligaram não dei por nada, muitas vezes não dou atenção às chamadas de números que desconheço, para além de que percorria as ruas da cidade como nos tempos em que não havia telemóveis, estava completamente mergulhada nas ruas, envolvida por cada um dos seus cantos, pelo modo como os corpos as ocupavam, era sexta-feira à noite, fim-de-semana, portanto, e havia um tempo que neles se fazia notar, um cansaço também, no modo como se encostavam nas paredes ou nas paragens dos autocarros, espalhando-se, em grupos, na maneira como os casais conversavam, como se medissem alguma espécie de coisa: contas, forças, desejos, um certo grau de exaustão. ouvi o telefone e atendi sem pensar. sim, era eu. sim, pedia desculpa, mas não tinha ouvido. sim, claro que sim, estaria lá dentro de meia hora. bruscamente a cidade voltava a ser um mapa geográfico, subitamente era necessário substituir o mapa afectivo em que tinha mergulhado pelas coordenadas de orientação mensuráveis em termos de acções. mentalmente imaginei o mais concentradamente possível o trajecto mais rápido para chegar ao hospital. alguém se dirigiu a mim com passos largos e determinados. naquele momento tudo podia acontecer, frequentemente tinha os encontros mais estranhos em momentos assim. era uma mulher dos seus sessenta e muitos anos, bonita, vestida com uma túnica que me captou particular atenção, de uma cor e textura ferrugem que parecia lápis de cera pastel e de cabelo branco apanhado e pele muito branca. entregou-me, num gesto semi-secreto um pequeno saco de plástico, que imediatamente acatei com a mesma discrição e segredou-me ao ouvido que também ela muitas vezes se esquecia, curvando-se de repente para acariciar um cão que ao que parecia acabara de fazer as suas necessidades ali, no chão. enfiei o saco de plástico entre ela e o cão e apressei-me a sair dali, sem dizer nada, voltando ao meu trajecto mental. seguindo-o, tal como o tinha imaginado, até conseguir finalmente apanhar um táxi.

por vezes espantava-me com a simpatia e celeridade do atendimento nos hospitais públicos. bastou dizer o nome, deixar a minha identificação, e num minuto já estava a entrar para a urgência. encontrá-la-ia na sala do fundo, sempre em frente depois da porta, à espera dos resultados de umas análises. antes de entrar na tal sala passei por uma sala supostamente de enfermagem, em que uma rapariga vestida de azul dos pés à cabeça, numa espécie de fato espacial que fazia o barulho que reconhecia como o barulho dos sacos-cama a roçar no material da tenda quando acampava, preparava a seringa e o braço de uma mulher sentada numa espécie de maca, um pouco desconfortável, para lhe retirar sangue. peço desculpa, pergunto pela sala de tratamentos e ela acompanha-me, mesmo aqui, já cá estamos, ao mesmo tempo que continua a preparar a seringa e com um sorriso tão rasgado que era estranho poder integrá-lo no meio daquele ambiente em que a dor se exprimia por todos os cantos, em gemidos e gestos petrificados, em expressões esvaziadas de qualquer intenção. havia macas ou camas de hospital, não sei definir, ao longo de todo o perímetro da sala. e em cada cama um corpo tapado com uma coberta de azul igual ao do fato da enfermeira. os corpos pareciam todos contorcer-se, ora numa imobilidade extrema ora em movimentos espasmódicos e repetitivos. dei-me conta da minha resistência em olhar para os rostos daqueles corpos. tinha de procurar a minha avó, o rosto e o corpo que lhe correspondiam. tinha de a diferenciar, tinha de sair daquela névoa azulada. não a via e começava a achar que nunca a iria reconhecer ali, naquele lugar, que a ia perder de vista. quando um rapaz gorducho e ainda mais sorridente do que a menina de azul me disse que ali estava ela, a comer um iogurte, que estava óptima, que as análises já estavam prontas e que podíamos ir ter com a médica. quando a vi, sentada numa cadeira de rodas, rompeu-se a atmosfera delirante em que tinha entrado. apertei-lhe a mão fria e ela apertou a minha com tanta força, como se me castigasse pela demora. procurei tirá-la dali, de maneira a que pudéssemos as duas fingir o mais rapidamente possível que aquele lugar não existia, nem que fosse apenas durante alguns instantes.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Lewis Carroll (Virginia Woolf. 1939)

In order to make us into children, he first makes us asleep. "Down, down, down, would the fall never come to an end?" Down, down, down we fall into that terrifying, wildly inconsequent, yet perfectly logical world where time races, then stands still; where space stretches, then contracts. It is the world of sleep; it is also the world of dreams. Without any conscious effort dreams come; the white rabbit, the walrus, and the carpenter, one after another, turning and changing one into the other, they come skipping and leaping across the mind. It is for this reason that the two Alices are not books for children; they are the only books in which we become children. President Wilson, Queen Victoria, The Times leader writer, the late Lord Salisbury—it does not matter how old, how important, or how insignificant you are, you become a child again. To become a child is to be very literal; to find everything so strange that nothing is surprising; to be heartless, to be ruthless, yet to be so passionate that a snub or a shadow drapes the world in gloom. It is to be Alice in Wonderland.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

signos e contágios. há, relativamente a um texto, a um filme, a uma pessoa com que nos encontramos, e isto a um nível muito superficial, quer dizer, à flor da pele, dois tipos muito diferentes de sensibilidade e dois grandes tipos de aliança. uma aliança que é feita imediatamente com os sinais de pertença, territoriais, autorais, que pedem  uma profundidade imediata, à qual se aliar. palavras que designam conceitos, mundos reconhecíveis. imagens feitas para localizar, representar e escalonar. e pode acontecer, a um nível muito subtil, até erótico, de detalhe, mas inteiramente  mundano. a leitura destes signos é inevitável, faz parte de uma espécie de mecanismo de sedução feito de estímulos e respostas rápidas: uma palavra, uma expressão, maneiras de dizer, de usar, que nos permitem reconhecer os traços. é um mecanismo que encontramos na caça e na experiência amorosa. uma maneira de usar as palavras, de construir imagens, uma maneira de usar os objectos, de falar. reconhecer paisagens e criar, logo a partir de primeiríssimas impressões, uma relação de conforto com o outro - conforto que advém da promessa da posse. do texto, do filme, de alguém. há aqui uma espécie de efeito de contágio, pois a compulsão, se não houver nenhum controlo crítico, como clínico, é a de automaticamente se criar, através de um minucioso estudo, uma cartografia de acesso a esse outro mundo que o transforme num mundo nosso, como d. juan procurava fazer com as suas presas, possuindo-as. em todo o caso, o detalhe e a micrologia envolvidos no processo de sedução alimentam necessariamente uma macroestrutura qualquer. mas noutro nível, o contágio acontece nas margens e nos limiares desse núcleo aglutinador da posse, num processo mais lento, de descoberta involuntária e ao mesmo tempo de perda do objecto, do sujeito, e da possibilidade de reconhecimento - processo de luto, por isso - marcado por um profundo esquecimento do tempo e por uma meditação sem objecto. intermitências e suspensões do tempo e do espaço, avanços e recuos, no seio de limiares entre mundos, efeitos de brumas, produzidos no meio da feliz impossibilidade de possuir seja o que for, de reconhecer o que for, e isto porque não se trata de nenhum contágio de alguma instância por outra, destes termos e da procura do elo de ligação, mas do próprio acontecimento do contágio, da aliança, da conexão em si mesma: choque, signo, encontro produtor de outra coisa, irreconhecível e inquietante.

(9/01/2018) 

terça-feira, 2 de janeiro de 2018


noite de 31 de dezembro. depois do jantar no indiano do costume, não havia rumo definido a seguir. despediu-se, um beijo. votos de bom ano. pôs-se a caminho. na rua, a impressão de humidade na zona púbica só podia ser uma vaga sensação. as lojas já estavam todas fechadas e não precisava delas para nada. pensava no frenesim do ano novo. há poucos dias tinha sido o natalício. agora este, que apesar de tudo é um pouco mais tranquilo, talvez até um antídoto para o outro. as ruas desertificavam-se. pareciam-se cada vez mais com as daquele conto do borges sobre a eternidade. devia ser sangue, sentia. a lua escondeu-se atrás de uma nuvem, para aparecer logo depois, esplendorosa, quase por inteiro. amanhã seria o perigeu lunar. pe ri geu. o dia do ano em que a lua está mais próxima de nós. lembrou-se das palavras da sua mãe sobre o impacto da lua nos doentes mentais e como os hospitais psiquiátricos tendiam a ficar mais confusos nestes dias. lembrou-se de uma lua impossível de tão próxima numa ilha, nos seus tempos de gravidez, esse plano de fronteira, e daquela maneira ébria de sentir os elementos. terra, água, temperaturas, chuva, brisas, ventanias. a humidade era cada vez maior. olhou em volta, tinha de haver um café aberto. não estava nada à espera, são estes desregramentos hormonais. ou talvez tenha sido a lua, quer dizer, o perigeu lunar. fez de repente um gesto falhado com o braço que a deixou exausta. era o gesto de chamar o táxi que de repente passara de raspão pela estrada, um gesto instintivo e desesperado, sem princípio nem fim, um farrapo de gesto, um delírio. o gesto surgira daquele hábito que tinha de, naqueles pequenos momentos cruciais, meio equívocos de tão banais, lhe parecer sempre uma boa ideia apanhar um táxi. sim, já várias vezes durante a vida os táxis lhe tinham aparecido como a versão urbana daqueles seres intermediários dos contos tradicionais, que vêm dar uma ajudinha, mensageiros, ajudantes. talvez então a menstruação, as regras vermelhas, grande sinal do ciclo biológico da mulher, tivessem sido contagiadas pelo tal perigeu, anual, esse pequeno sinal dos ciclos cósmicos. como as mulheres se contagiam umas às outras nos seus ritmos e ciclos e como as claras de ovos que se escangalham se uma mulher menstruada as bater. será tudo uma questão de contágio? enfim, mas quando se rompem os ciclos naturais, já se estão, no momento em que se desfazem, a criar outros novos... táxi! finalmente, um anjo.