sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

enroscar-se

enroscar-se a valer numa possibilidade remota de ser, enroscar-se tanto tanto que a possibilidade se vira do avesso, mostra as entranhas num doce desventrar-se e nada pede senão respirar e respira tão inteiramente que parece explodir e deseja o vazio do outro lado, só mais uma vez

domingo, 25 de dezembro de 2016

cena

cena, chamou-lhe Virginia Woolf, visão, segundo Thomas Hardy, o correlativo objectivo de uma emoção, disse TS Eliot... uma situação, acontecimento ou série de acontecimentos que servirá de fórmula a uma emoção específica... “vêmo-la, como se tivesse existido sempre (...) vívida (...) não só para o olho, pois todos os sentidos participam”. sentidos de quem? um impessoal, “um pequeno borrão de inconsciência”...

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Arte e Natureza





Natureza! Estamos rodeados por ela e entrelaçados nela - somos incapazes de escapar dela e incapazes de penetrá-la profundamente. Sem ser convidada e sem ser prevenida, atrai-nos para o vórtice da sua dança e afasta-nos, até que estejamos exaustos e caiamos em seus braços. Cria eternamente novas formas; aquilo que existe nunca existiu antes; aquilo que nunca existiu volta a existir - tudo é novo e, contudo, para sempre antigo. Vivemos no meio dela, mas somos estrangeiros para ela. Ela fala continuamente conosco, mas não nos confia os seus segredos. Agimos constantemente nela, mas não temos sobre ela nenhuma força. Parece ter apostado tudo na individualidade, mas não sabe o que fazer com os indivíduos. Constrói e destrói continuamente, sendo a sua forja inacessível. Vive através dos seus filhos; mas onde está a mãe? É a única verdadeira artista: cria os maiores contrastes a partir do material mais simples; a maior perfeição sem ponta de esforço; a determinação mais precisa, sempre coberta de algo suave. Cada uma das suas obras tem a sua própria essência, cada uma das suas aparições a caracterização mais singular, mas faz de tudo uma unidade.


Die Natur: Fragment” (“Nature: A Fragment”). In: Johann Wolfgang Goethe, "Schriften zur Naturwissenschaft: Auswahl", Edited by Michael Böhler, Tiefurter Journal, Stuttgart: Philipp Reclam, (1783)1977,  pp. 28-31. Excerto traduzido por mim a partir desta tradução inglesa de Alan N. Shapiro. Tradução inglesa da totalidade do fragmento, aqui. 


Se a arte conseguir, através da imitação da Natureza, através do esforço de constituição de uma linguagem universal, através do estudo exacto e aprofundado dos objectos, chegar finalmente mesmo a conhecer com exactidão e cada vez com maior exactidão as propriedades das coisas e o seu modo de existir, se conseguir uma visão sinóptica da série das figuras e uma justaposição e imitação das suas diferentes formas características, então gera-se o Estilo, o grau supremo a que ela pode chegar; o grau em que se pode equiparar às tarefas humanas mais elevadas.

Do mesmo modo que a simples Imitação assenta sobre uma existência tranquila e uma presença benevolente, e a Maneira capta uma manifestação com um ânimo talentoso e ágil, o Estilo assenta sobre os alicerces mais profundos do conhecimento, sobre a essência das coisas, tanto quanto nos seja permitido conhecê-la em figuras visíveis e tangíveis.

"Einfache Nachahmung der Natur, Manier, Stil" Teutscher Merkur, 1789 (HA 12, pp 30-34), In: Johann Wolfgang Goethe, A Metamorfose das Plantas, Tradução, Introdução, Notas e Apêndices de Maria Filomena Molder, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1993, p 63


sábado, 26 de novembro de 2016

sem título

Vamos imaginar. Ou vamos ver. Não parece difícil mas é preciso, para ver, uma espécie de método contra-imaginário. Talvez suficientemente abstracto para conseguir pensar e suficientemente concreto para conseguir sentir.
Há vinte anos encontrámos alguém. Não importa se era homem ou mulher, se era jovem ou velho. Foi há vinte anos, mas também isso pouco importa. Importa que houve um encontro. Como terá sido esse encontro.
Vamos ver. Desço uma rua a correr. Olho em frente. Por acaso e num lapso de tempo olho para o lado, sem nenhuma razão de ser. Do outro lado da rua, do lado direito,  há uma tasca. Vejo a porta aberta e o seu interior, escuro, que contrasta com a luz branca do exterior. Em movimento, o meu olhar passou pela porta e por parte do interior da tasca, em particular pelo olhar de alguém que parecia olhar-me. Em movimento, a descer a rua, acidentalmente, num desvio, dei-me conta de um olhar que me viu, do interior de uma tasca. Continuei a descer. Mais tarde voltei a subir a mesma rua. Subo a rua, agora pelo lado da tasca. Entro. Sento-me. Lá estava o indivíduo, o portador dos olhos que me tinham fitado. Olhou-me. Disse qualquer coisa levantando-se e aproximou-se da minha mesa, confirmando que ainda há pouco me tinha visto a descer a rua. Não havia dúvidas, tinha ficado com a minha imagem. Senti-me estranha e como que incomodada. Era como se possuísse algo que me pertencia. Descreveu-me o que viu. Não era eu, pensava. Seria eu, pensava. Descrevi-lhe o que vi. Não éramos nós, nem o que víamos era um ao outro, mas também havia nós e também havia um ao outro. Mas o que havia mais era essa visão estranha, nem minha nem dele. Uma visão, extremamente parcial, que tinha sido como que trespassada pela possibilidade do todo, como se uma fagulha prestes a incendiar tudo à sua volta, movida por uma intensa curiosidade. Encontro. Uma visão descobre noutra visão o desejo que a conduz. E mais, e o que viste mais? E o que vês agora? E ali, e mais adiante? E um bocadinho mais para aqui?

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Simulacros

... tal como uma membrana arrancada às superfícies das coisas, vão por todo o lado esvoaçando pelos ares.

Lucrécio

domingo, 6 de novembro de 2016

nunca no interior da casa

I will never again mention love or death inside a house...*

Não só perante os ciprestes não falarei nunca do amor e da morte no interior da casa
mas posto nos recessos (da terra), a contra-luz e em cor de ébano - está a imagem da noite na retina negra,
pelos nervos obscuros. No anverso
dos ramos a bainha da folha distingue a face sombria
da iluminada, até que a noite as suprime (paisagem) do olhar,
mas nunca na sua memória; nunca no interior da casa,
só no lugar exterior que não a circunde,
nem se implante (nele) (a casa), nem veja a sua direcção
(o vácuo) e, água sob este cipreste, o amor assim como a morte hão-de formar-se
do dom do desespero - dado a lugar mais extenso
com os relevos do solo e as formas livres: desejo, o ter.**

* Walt Whitman. Leaves of Grass.
** Fiama Hasse Pais Brandão. Desejo, o ter.

domingo, 30 de outubro de 2016

ver de óculos escuros


Não é que não me aconteça ter vontade de escrever notas e pensamentos soltos quando vejo filmes, mas em geral, num filme que vejo pela primeira vez não acontece e resisto se sentir essa necessidade. Mas ontem, em Austerlitz, de Sergei Loznitsa, foi preciso escrever algumas, insistentes, frases que me vinham à cabeça. Foi uma maneira de não sucumbir ao seu efeito emocional.

Mas agora quando fui ver as notas não havia nada. Nada. Vazio. Só espanto.

A câmara fixa de Austerlitz capta a chegada da multidão que visita os antigos campos de concentração (Sachsenhausen e Dachau). Uma enorme massa de gente, aproxima-se do portão do campo. No início do filme ficamos à volta de quinze minutos, talvez, a contemplar o movimento desta gente, a dirigir-se  para o portão do campo. É uma gente particular, organizada sob a forma da excursão. São turistas: de mochila, microfone e mapa na mão, roupa confortável de caminhada, chapéu e óculos escuros. Estão confortavelmente acompanhados - ou no contexto de um grupo turístico ou em família. A câmara varia entre o flano fixo que os contempla de frente e o plano de traseiras, que nos mostra a entrada no campo. Estes corpos dirigem-se numa massa compacta e direccionada para o interior do campo, como esses outros que o fizeram antes, mas que não voltaram a sair. Esses estavam nus. Estes estão vestidos, hipervestidos, sobrevestidos.

O que vão ver?
Dentro do campo contemplamos o movimento desta multidão que constantemente alterna entre a informação do microfone que nunca ouvimos e o gesto de tirar fotografias com o telemóvel.
Vários, posam para a fotografia: nos troncos de tortura. Nos "banhos". Nos fornos.
Outros, abeiram-se ligeiramente, tentam ver melhor, os olhos não vêem. Finalmente tiram uma foto com o telemóvel e seguem caminho.
Como é que se posa para uma fotografia nestas condições?
Que condições são estas?
O que é isto?
Um museu?
O que é um museu?
O que é isto?
O que é isto?
Quantos são? Quanto pagaram para entrar? Quanto?
O que vão ver?
O que vêem?
Que olhos?
Como é que fazem pausas entre as informações das visitas guiadas para comer uma "sandes"?
E depois seguem o guia, quando ele diz "vamos dar uma vista de olhos nos fornos"?
Mas, entretanto, tiram uma selfie de grupo.



quinta-feira, 27 de outubro de 2016

olhos















LBunuel, DVertov, SBeckett, MDeren, RScott
Un chien Andalou, Kino-Eye, Film, Meshes of the afternoon, Blade-Runner

terça-feira, 18 de outubro de 2016

ἄπνοια


Poesia: é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração. Quem sabe se a poesia não faz o caminho – também o caminho da arte – com vista a uma tal mudança? talvez ela consiga, já que o estranho, ou seja o abismo e a cabeça de Medusa, o abismo e os autómatos, parecem ir numa e na mesma direcção – talvez ela consiga então aí distinguir entre estranheza e estranheza, talvez a cabeça de Medusa se atrofie precisamente aí, talvez precisamente aí fracassem os autómatos – neste breve e único momento.
(...)
(O poema) mantém viva a memória das suas datas, mas – fala. É claro que fala sempre e apenas em causa própria, a mais própria que se possa imaginar. Mas penso (...) que desde sempre uma das esperanças do poema é precisamente a de, deste modo, falar também em causa alheia – não, esta palavra já a não posso usar agora –, é a de, deste modo, falar em nome de um Outro, quem sabe se em nome de um radicalmente Outro. (...) O poema detém-se ou alimenta esperanças – uma palavra que temos de relacionar com a criatura – quando se encontra com tais pensamentos. Ninguém pode dizer quanto tempo durará ainda esta pausa na respiração – o alimentar esperanças e o pensamento. O reino do que é “veloz”, que sempre foi o do “lá fora”, ganhou mais velocidade. O poema sabe isso, mas mantém a sua rota em direcção àquele “Outro”.

Paul Celan, “O Meridiano”. In: Arte Poética. Edição e tradução de João Barrento. Lisboa, Livros Cotovia, 1996

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

no meio das vertigens


Na descida da falésia até ao mar, observo duas pessoas cruzarem-se numa escadaria a pique. Uma desce, a outra sobe. Não se conhecem. No cruzamento trocam uma ou duas palavras, mas sobretudo a postura dos seus corpos e talvez um certo ritmo cardíaco permite uma estranha forma de reconhecimento, involuntário mas atento, e uma certa comunidade, como se há muito se conhecessem. Seguem caminho. Desço as escadas e cruzo-me com a  pessoa que sobe. Pergunto-lhe qualquer coisa objectiva. De olhos fixos na pedra, mas esforçando-se por ser cordial, diz-me que não sabe nada sobre o que eu lhe pergunto, que não pode saber. Só vê a escada, procurando agarrar-se como pode a um terreno extremamente escorregadio. Ainda tenta olhar para mim, mas é tomada por um grande desequilíbrio. Só depois da frustração de não obter a resposta desejada percebo que ela sofre de vertigens. Percebo então que naquele cruzamento que observei entre os dois se deu um encontro no meio das vertigens que ambos sentiam e presumo que, por um momento, tenham sentido um breve conforto naquela escadaria.

traços


andam sempre por aí, pelos corpos, entre os corpos. desde pequena que me fascinam: tiques, ou quase tiques, expressões corporais e faciais, esgares, esses gestos únicos e ao mesmo tempo banais. o gesto de pôr a carteira atrás do bolso das calças, o gesto de apanhar o cabelo. atender o telefone, abrir a porta de casa. posturas, maneirismos. uma certa maneira de fumar, outra de dormir, de esperar na fila do supermercado, de pegar na chávena do café, de agarrar no livro, de o sublinhar, de se limpar com a toalha depois do banho, de subir escadas, de soletrar em voz baixa, de fazer sinal para pedir a conta ao senhor do café, de colocar a mão no volante do carro, de deitar as palavras para fora da boca, de cantarolar. os traços desenhados no rosto pelo choro que vem, por um sorriso. o gesto de se desviar de um assunto, de se despedir. e não falo dos que não se vêem. serão infinitos? são pequeninos, minúsculos, seres liliputianos. mas uma meia dúzia deles, nem tanto, pode ocupar uma vida inteira e, nem que durem pouco mais que um ápice, durarão para sempre. acontecem entre pessoas, mas também entre as pessoas  e as coisas. na verdade há quase sempre coisas entre as pessoas e há sempre momentos em que nos tornamos coisas.
os traços ficam, transformam-se, alguns misturam-se uns aos outros, intensificam-se com essas misturas. outros parecem desaparecer e por vezes reaparecer modificados, estranhos. traços belos e traços terríveis, traços de uma vasta paleta de cores, ou não, serão talvez brancos, diáfanos: traços impessoais.

o terror: o desaparecimento dos traços. o negro absoluto.



quarta-feira, 5 de outubro de 2016


Nada lhe era mais insuportável do que a repetição do mesmo caminho. Mas, pensando bem, isto acontecia-lhe mais vezes de carro. Talvez tivesse que ver com a velocidade. Quando andava a pé, os caminhos eram sempre diferentes, mesmo quando se repetiam, provavelmente porque os acidentes naturais sobressaiam: uma luz particular ou um risco no céu. Um formigueiro que tinha hoje um desenho diferente. Os encontros. De carro o fantasma do mesmo caminho surgia mais vezes. Andava sempre à aventura, sempre outro, mais outro e outro caminho. Sim, teria a ver com a velocidade. A a percepção do mesmo e do diferente em velocidades e ritmos diferentes varia...

sábado, 17 de setembro de 2016

lançadas em pleno voo, as imagens

A evolução da imagem apenas por convenção pode denominar-se evolução. Da mesma maneira, podemos - esquecendo a possibilidade técnica - imaginar um avião que em pleno voo construa e lance no espaço outra máquina. Esta máquina voadora, ainda que absorta no seu próprio voo, consegue por sua vez construir e lançar no espaço uma terceira. (...) a montagem e o lançamento destas máquinas - tecnicamente impensáveis - que são lançadas em pleno voo não constitui uma função do avião voador acrescentada e lateral, pois supõe um atributo essencial do próprio voo, uma parte do mesmo, e contribui para a sua possibilidade e segurança, tanto quanto o mecanismo da direcção ou do funcionamento do motor. Naturalmente, só a muito custo se pode chamar "evolução" a esta série de projéteis que se constituem em pleno voo e saem projectados uns dos outros conservando a integridade do movimento.

(tradução minha a partir de:
Osip Mandelstam, "Coloquio con Dante", Tradução de Jesús García Gabaldón, Visor Libros, 1996)







quarta-feira, 7 de setembro de 2016

gesto

IC19 37,5 graus. Há bicha e está quente. Abro as janelas. Paro. Arranco. Bebo um pouco de água, decido-me pela música três faixas à frente, volto atrás, não, quero ouvir de novo esta. Faço um movimento qualquer com o braço, não me lembro porquê (talvez não tivesse porquê). Pelo retrovisor, logo depois do meu gesto, vejo que a mulher que conduz o carro atrás do meu e que fazia sinal pisca para mudar de faixa repete o mesmo gesto que eu fiz com o braço. Percebo então que esse gesto que antes não tinha porquê passara a fazer parte de um diálogo e tem agora um significado. Aparentemente, à medida que avanço lentamente, a mulher desiste de mudar de faixa, talvez eu estivesse a demorar demais, talvez aquele gesto a tivesse tranquilizado. Agora seguia-me de mais perto. Como se o facto de estar cinco metros à frente lhe desse paz de espírito. Paramos novamente. Arranco. Aceno com o braço e mudo de faixa. Ainda não sei o que quer dizer aquele gesto.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

morrer, cair, desmaiar.


- Porque subiste por aquela encosta tão dura, se te faltavam as forças?
- Fugia.
- De quê?
- De um peso que me puxa para baixo. Tinha de subir, na hora em que o sol é mais terrível, essa hora em que as pedras e a terra chamam por nós. Sentia-me pó, que por todo o lado pairava e colava.
- Mas o teu corpo fraquejava.
- Não, naquela hora não era mulher. Talvez ao amanhecer, nas terras húmidas, o tivesse sido. Mas naquela hora as pedras falaram-me. Sabes, o perigo não é desmaiar, cair, morrer. É antes numa outra ordem que ele reside: morrer, cair, depois, talvez, desmaiar.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Os mimos guardam um segredo




Uma vez perguntaram-me qual era o significado desta cena, a cena final do filme Blow-up, de Antonioni. Eu não tive, como é óbvio, resposta, como não terei para pergunta semelhante sobre nenhuma cena de nenhum filme. Achei ainda assim que é uma muito boa cena para falar sobre esta coisa das perguntas sobre os significados das coisas. É muito interessante tentar perceber, antes de qualquer debate semiológico, porque é que se anda sempre à procura da metáfora ou do que significa, do que quer dizer isto e aquilo. O que se terá passado para que se faça sentir na nossa cultura artística esta pulsão para "o que quer dizer" ou então, as avessas disto, "a arte que não quer dizer nada" porque é o contrário da arte que quer dizer qualquer coisa. Talvez fosse interessante, antes de mais nada, ver melhor a pergunta. É um lugar comum. Talvez, muitas vezes, quando se pergunta "o que quer dizer" não se esteja imediatamente a determinar esse dado como uma metáfora ou como um significado preciso. Na sua forma comum esta questão é banal e até pode ser interessante, porque a ambiguidade da linguagem o permite. O problema é quando ela se torna uma questão académica, institucional, onde "o que quer dizer" e o "que não quer dizer nada" assumiram proporções monstruosas. O curioso é que a questão "o que quer dizer" afasta-nos sempre do que se está a dizer, seja uma frase ou uma imagem, do que está a acontecer. Neste caso diz-se por gestos, movimentos de câmara, dos corpos e dos olhares. Os mimos talvez reflictam esse desejo de ver o que não está lá. Talvez. Mas isso não está nas imagens de forma absoluta. Os gestos são o que são. Não querem dizer. Podem ser mais do que são.  Neste caso, nesta cena, cria-se um espaço e um corpo completamente diferente, que envolve uma maneira de ver diferente do ver que estava implicado no olhar deste fotógrafo. E que tem a ver com um gesto ao qual se retirou o significado como centro: a bola. Talvez isto queira dizer qualquer coisa, talvez não. Perguntar "o que quer dizer" é sempre um movimento que se afastou do problema que é dado no real, é sempre uma espécie de ansiedade infantil pela resposta. Mas as crianças não perguntam tanto "o que quer dizer" como nós adultos e não perguntam apenas "o que quer dizer". Elas perguntam "e depois, o que se passou a seguir?", elas respondem, "não, não, não é isso", elas dizem o que está nas imagens em vez de verem o que está n"o que quer dizer".

sexta-feira, 29 de julho de 2016

medicina


Eu tento fazer filmes que sejam vistos por pessoas ou que sejam feitos por pessoas que tenham necessidade de os fazer para si. Da mesma maneira que um médico precisa de uma radiografia e o doente precisa de um médico e que, num certo momento, os dois precisam da radiografia para estabelecerem uma relação um com o outro. Tento fazer filmes assim, ou seja, por necessidade. (...) E eu tenho necessidade de ver mais longe, de fazer para aprender, de ler um mapa para viajar.

JLGodard, Introduction à une veritable Histoire du Cinéma, Albatros, 1980




Scénario du Film Passion 1982


sábado, 16 de julho de 2016

Preguiça


A alma adora nadar.
Para nadar deitamo-nos de barriga para baixo. A alma desloca-se e parte. Vai a nadar. (Se a vossa alma parte quando estão de pé, ou sentados, com os joelhos ou os cotovelos dobrados, para cada posição corporal diferente, a alma partirá com um andamento e uma forma diferentes...)
Costumamos falar de voar. Não é isso. É nadar o que ela faz. Ela nada como cobras e enguias, nunca de outra maneira.

 Henri Michaux, « La paresse » , Mes propriétés (1930), dans La Nuit remue (Poésie Gallimard, p. 110-111)

quinta-feira, 7 de julho de 2016

algumas faces de um cristal: o beijo

Jinny andava a correr, depois do pequeno almoço, e viu que as folhas se mexiam numa abertura da sebe. Pensou que fosse um pássaro no ninho, sentia-se assustada, as folhas continuavam a mexer-se. Passou a correr por Susan, Rhoda, Neville e Bernard, que conversavam na casa das ferramentas. Gritava e corria, cada vez mais depressa. As folhas verdes agitavam-se, o seu coração agitava-se. Foi contra Louis no meio dos arbustos e beijou-o. O seu coração saltava e as folhas continuavam a mexer-se sem haver nada a fazê-las mexer. Susan viu Jinny beijar Louis. Levantou a cabeça do seu vaso de flores e espreitou pela abertura da sebe e viu-os beijarem-se. Sentiu que tinha de embrulhar a sua ansiedade num lenço, dar-lhe um nó e fazer dele uma bola para a deixar entre as raízes das faias. Iria alimentar-se de nozes, procurar ovos entre as sarças e morrer ali. Bernard viu Susan a passar por eles, levava um lenço amarrotado como uma bola nas mãos. Os seus olhos pareciam os olhos de um gato antes de saltar. Deixou Neville e seguiu-a cuidadosamente para a poder consolar quando ela, cheia de raiva, pensasse : estou sozinha.

[paráfrase de um beijo narrado n'as Ondas de Virginia Woolf]

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Palavras de María Zambrano. Para Kiarostami.


E tudo o que rodeia o homem e ele próprio é arcano. O homem é a criatura à qual a realidade se dá como inacessível. Mas sentiu sempre a necessidade inaludível de clarificá-lo, de abrir caminho, de chegar a ele, de que lhe seja manifesto (...) Quando os deuses aparecem, é a sua forma que surge; ela é a novidade. Mas a forma não é só beleza, mas também capacidade de função. O que fica assegurado e libertado na forma é a função divina; o que encontra nela a sua garantia. Ao conceder-lhes forma, o poeta colaborou com os próprios deuses, como colabora todo aquele que serve uma revelação. (...) Cada deus abre um caminho no arcano inicial, no "pleno" que é, originalmente, a realidade que rodeia o homem. Não é o vazio a povoar-se de deuses, mas ao contrário: é o pleno da plenitude arcana, sagrada, aquele que se abre, se torna acessível através dos deuses (...) Transitar é, precisamente, viver, poder e ter para onde ir.



segunda-feira, 27 de junho de 2016

Thoughts Under an Oak—A Dream

June 2.—THIS is the fourth day of a dark northeast storm, wind and rain. Day before yesterday was my birthday. I have now enter’d on my 60th year. Every day of the storm, protected by overshoes and a waterproof blanket, I regularly come down to the pond, and ensconce myself under the lee of the great oak; I am here now writing these lines. The dark smoke-color’d clouds roll in furious silence athwart the sky; the soft green leaves dangle all round me; the wind steadily keeps up its hoarse, soothing music over my head—Nature’s mighty whisper. Seated here in solitude I have been musing over my life—connecting events, dates, as links of a chain, neither sadly nor cheerily, but somehow, to-day here under the oak, in the rain, in an unusually matter-of-fact spirit.
But my great oak—sturdy, vital, green—five feet thick at the butt. I sit a great deal near or under him. Then the tulip tree near by—the Apollo of the woods—tall and graceful, yet robust and sinewy, inimitable in hang of foliage and throwing-out of limb; as if the beauteous, vital, leafy creature could walk, if it only would. (I had a sort of dream-trance the other day, in which I saw my favorite trees step out and promenade up, down and around, very curiously—with a whisper from one, leaning down as he pass’d me, We do all this on the present occasion, exceptionally, just for you.)
 
Specimen Days
Thoughts Under an Oak—A Dream
Walt Withman
 

domingo, 26 de junho de 2016

Moment of vision, Thomas Hardy. The unconscious writers.


The unconscious writers, on the other hand, like Dickens and Scott, seem suddenly and without their own consent to be lifted up and swept onwards. The wave sinks and they cannot say what has happened or why. Among them — it is the source of his strength and of his weakness — we must place Hardy. His own word, “moments of vision”, exactly describes those passages of astonishing beauty and force which are to be found in every book that he wrote. With a sudden quickening of power which we cannot foretell, nor he, it seems, control, a single scene breaks off from the rest. We see, as if it existed alone and for all time, the wagon with Fanny’s dead body inside travelling along the road under the dripping trees; we see the bloated sheep struggling among the clover; we see Troy flashing his sword round Bathsheba where she stands motionless, cutting the lock off her head and spitting the caterpillar on her breast. Vivid to the eye, but not to the eye alone, for every sense participates, such scenes dawn upon us and their splendour remains. But the power goes as it comes. The moment of vision is succeeded by long stretches of plain daylight, nor can we believe that any craft or skill could have caught the wild power and turned it to a better use. The novels therefore are full of inequalities; they are lumpish and dull and inexpressive; but they are never arid; there is always about them a little blur of unconsciousness, that halo of freshness and margin of the unexpressed which often produce the most profound sense of satisfaction. It is as if Hardy himself were not quite aware of what he did, as if his consciousness held more than he could produce, and he left it for his readers to make out his full meaning and to supplement it from their own experience.


Virginia Woolf,
The Novels of Thomas Hardy
* Written in January, 1928

domingo, 15 de maio de 2016

A mulher sem sombra

A mulher sem sombra - vinda de um reino longínquo habitado por seres que não conhecem a duração, a impenetrabilidade ou o peso da matéria - por amor, substituiu a ligeireza pelo peso e a transparência pela opacidade, adquiriu um corpo e casou-se com o imperador de um reino de que ignoramos o lugar e o tempo. Mas o corpo da imperatriz guardava ainda vestígios da sua pátria longínqua. Era um corpo que não era afectado pela luz. A mulher sem sombra é a mulher que não pode conceber: é a primeira narrativa de Hofmannsthal em que ouvimos os apelos das crianças que ainda não nasceram, quando estão quase a nascer, que queriam nascer e que pedem que alguém esteja pronto para as ouvir e receber.

C’est un récit absolument incantatoire et d’une violence presque mythique, car tout se passe sur un plan où nous ne savons pas si nous rêvons ou bien si nous sommes dans le rêve d’un autre, sentant que ce qui s’y passe est un secret que cet autre ne peut garder pour soi. Ce sont des plans de réalité séparés par des frontières très fines, à travers lesquelles il y a des transferts constants opérés par des forces oniriques. La femme sans ombre – venue d’un royaume lointain habité par des êtres qui ne connaissent ni la dureté, ni l’impénétrabilité, ni le poids de la matière – est celle qui, par amour, remplace pour toujours la légèreté par le poids, la transparence par l’opacité, acquiert un corps et épouse l’empereur d’un royaume dont nous ignorons.

Maria Filomena Molder, Rue Descartes, n° 39, 2003/1, Wittgenstein et le paradigme de l'art





quinta-feira, 12 de maio de 2016

Bia

Os Songhai, povo do Níger e do Mali, acreditavam que o ser humano consistia em três elementos: ga (carne), hundi (força vital) e bia (o duplo)
 A carne é o nosso elemento material, o corpo. A força vital situa-se no coração, desde o nascimento e dissipa-se no momento da morte. O duplo é o nosso aspecto imaterial: vêmo-lo como um reflexo de nós mesmos na superfície da água ou num espelho. O duplo marca a individualidade do nosso ser. É o duplo que dita o tom das nossas personalidades, dos nossos gostos e desgostos, a qualidade da nossa expressão. É o nosso ser no mundo. Bia é um poder de deslocamento.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Inquietante cinzento. Melville.


Everything was mute and calm; everything gray. The sea, though undulated into long roods of swells, seemed fixed, and was sleeked at the surface like waved lead that has cooled and set in the smelter’s mould. The sky seemed a gray surtout. Flights of troubled gray fowl, kith and kin with flights of troubled gray vapors among which they were mixed, skimmed low and fitfully over the waters, as swallows over meadows before storms. Shadows present, foreshadowing deeper shadows to come.

(Benito Cereno, início)

Most melancholy of all the hours of earth, is that one long, gray hour, which to the watcher by the lamp intervenes between the night and day; when both lamp and watcher, over-tasked, grow sickly in the pallid light; and the watcher, seeking for no gladness in the dawn, sees naught but garish vapors there; and almost invokes a curse upon the public day, that shall invade his lonely night of sufferance.
The one small window of his closet looked forth upon the meadow, and across the river, and far away to the distant heights, storied with the great deeds of the Glendinnings. Many a time had Pierre sought this window before sunrise, to behold the blood-red, out-flinging dawn, that would wrap those purple hills as with a banner. But now the morning dawned in mist and rain, and came drizzlingly upon his heart. Yet as the day advanced, and once more showed to him the accustomed features of his room by that natural light, which, till this very moment, had never lighted him but to his joy; now that the day, and not the night, was witness to his woe; now first the dread reality came appallingly upon him. A sense of horrible forlornness, feebleness, impotence, and infinite, eternal desolation possessed him. It was not merely mental, but corporeal also. He could not stand; and when he tried to sit, his arms fell floorwards as tied to leaden weights. Dragging his ball and chain, he fell upon his bed; for when the mind is cast down, only in sympathetic proneness can the body rest; whence the bed is often Grief's first refuge. Half stupefied, as with opium, he fell into the profoundest sleep.

(Pierre, or the ambiguities, V, III) 

In sight at gray dawn, the distant vessel, though in reality approaching, recedes from view, as the sun rises higher and higher. This holds true, till its vicinity makes it readily fall within the ordinary scope of vision. And thus, too, here and there, with other distant things: the more light you throw on them, the more you obscure. Some revelations show best in a twilight.

(Mardi, XIX)

It was in the cool of the early morning, at that hour when a man's
face can be known, that we set sail from Diranda; and in the ghostly
twilight, our thoughts reverted to the phantom that so suddenly had
cleared the plain. 

(Mardi, XXXVIII)


sábado, 9 de abril de 2016

Visão






Ter uma visão não é ver muito bem, ver mais profundamente ou ver mais. Ter uma visão envolve um outro poder : um ver que não fixa nem se fixa e que capta o nunca visto, que capta isso que vem e devem. Isso que vem não cessa de se aproximar dos nossos olhos, mas nós não vemos pois ainda não é para nós, ou é para nós mas enquanto já não nos reconhecermos a nós mesmos, quer dizer, é para nós enquanto estivermos em vias de mudar. O verdadeiro rosto é mutante.







fotogramas de A Terra de Alexander Dovzhenko

sábado, 2 de abril de 2016

sentidos arcaicos guardados no uso das palavras: aîon, chronos, kairos.

No grego moderno kairos diz-se do tempo meteorológico, que se vê, se sente e por isso também se prevê, ainda que essa previsão seja sempre indeterminada. Mas sobretudo é sensível: o suor numa camisola é kairos, ele passa na matéria e impregna-a. Aîon usa-se para designar século, guardando do seu sentido arcaico a sua imensidão face ao nosso ponto de vista limitado, a sua indeterminação. Chronos diz-se do tempo dos relógios, do tempo que se demora objectivamente daqui para ali, do tempo que sabemos ter e não ter. Do tempo racional. Há no kairos, tempo da ocasião, uma certa mundaneidade primitiva, ele é acessível a todos os que lhe prestam atenção, está impresso nas coisas, habita-as. Ao Aîon ninguém acede senão os deuses, profetas, adivinhos e videntes. Esconde um segredo demasiado grande e trágico, de vida e de morte. Ao kairos atende-se numa espécie de jogo lúdico, entre a constatação de factos e a decifração de vestígios......

nuance

Penso no bando de nuances de sensações que imagino como aqueles bandos de Michaux ou de pássaros ou de cardumes em movimento que, numa intuição tão vaga quanto precisa de perigo iminente, ondulam num movimento puro de afectos expresso por gradações, nuances.  Aproximam-se, tocam-se, passam umas nas outras para de imediato se distinguirem intensa, subtilmente. Tudo se quer encontrar com tudo, numa emergência contínua de irregularidades, anomalias, disfunções, de bruscas interrupções sufocantes e retomadas de ar puro. E neste jogo, por vezes um combate violento, para além das separações e uniões mais ou menos brutais, há uma série de padrões que se repetem mas nunca iguais, pois cada gesto sendo vivo, quente, rítmico não conhece a repetição mecânica e a forma que cria é sempre um anseio de forma. Que difícil é hoje encontrar a nuance. Tudo insuportavelmente peneirado, abarrotado, espartilhado. Encontra-se fora, seguramente, mas não basta sair. É por isso que o céu e os movimentos das nuvens ou as ínfimas percepções do enorme mar (e talvez o deserto), algumas músicas e algumas imagens, têm esse efeito de um inquietante apaziguamento: como que assegurando-nos que a nuance insiste, persiste. Mas é preciso tempo vivo (este segundo, esta hora) para captá-la na espuma indiferenciada dos dias.

domingo, 20 de março de 2016

The Mark on the Wall * A Marca na Parede


But after life. The slow pulling down of thick green stalks so that the cup of the flower, as it turns over, deluges one with purple and red light. Why, after all, should one not be born there as one is born here, helpless, speechless, unable to focus one’s eyesight, groping at the roots of the grass, at the toes of the Giants? As for saying which are trees, and which are men and women, or whether there are such things, that one won’t be in a condition to do for fifty years or so. There will be nothing but spaces of light and dark, intersected by thick stalks, and rather higher up perhaps, rose-shaped blots of an indistinct colour—dim pinks and blues—which will, as time goes on, become more definite, become—I don’t know what....
 (...)
All the time I’m dressing up the figure of myself in my own mind, lovingly, stealthily, not openly adoring it, for if I did that, I should catch myself out, and stretch my hand at once for a book in self-protection. Indeed, it is curious how instinctively one protects the image of oneself from idolatry or any other handling that could make it ridiculous, or too unlike the original to be believed in any longer. Or is it not so very curious after all? It is a matter of great importance. Suppose the looking glass smashes, the image disappears, and the romantic figure with the green of forest depths all about it is there no longer, but only that shell of a person which is seen by other people—what an airless, shallow, bald, prominent world it becomes! A world not to be lived in. As we face each other in omnibuses and underground railways we are looking into the mirror that accounts for the vagueness, the gleam of glassiness, in our eyes. And the novelists in future will realize more and more the importance of these reflections, for of course there is not one reflection but an almost infinite number; those are the depths they will explore, those the phantoms they will pursue, leaving the description of reality more and more out of their stories, taking a knowledge of it for granted, as the Greeks did and Shakespeare perhaps—but these generalizations are very worthless. The military sound of the word is enough. It recalls leading articles, cabinet ministers—a whole class of things indeed which as a child one thought the thing itself, the standard thing, the real thing, from which one could not depart save at the risk of nameless damnation. 


Mas a vida. A lenta derrocada dos grandes caules verdes de tal modo que a flor acaba por se virar, ao cair, inundando-nos com uma luz de púrpura e vermelho. Porque é que, bem vistas as coisas, não nascemos ali, em vez de aqui, desamparados, incapazes de ajustarmos como deve ser a luz do olhar, rastejando na erva entre as raízes, entre os calcanhares dos gigantes? Porque dizer o que são as árvores e o que são e o que são mulheres, ou sequer o que é haver coisas como árvores, homens e mulheres, não será algo que estejamos em condições de fazer nos próximos cinquenta anos. Não há nada por vezes senão espaços de luz e de escuridão, intersectados por grandes hastes densas e talvez bastante mais acima manchas em forma de rosa – rosa-pálido ou azul-pálido – de cor indecisa, e tudo isso, à medida que o tempo passa, se vai tornando mais definido e se transforma – em não se pode saber o quê.
(...)
A todo o momento vou construindo uma imagem de mim própria, apaixonadamente furtiva, que não posso adorar directamente, porque se o fizesse cairia imediatamente em mim e deitaria  a mão a um livro num gesto de autodefesa. É curioso, com efeito, como uma pessoa protege a sua própria imagem de toda a idolatria ou de qualquer outro sentimento que a possa tornar ridícula ou demasiado diferente do original para ser verosímil. Ou talvez não seja assim tão curioso afinal de contas? É uma questão da mais alta importância. Imagine-se que o espelho se partia, a imagem desaparece e a figura romântica rodeada pela floresta profunda e verde desfaz-se; fica apenas essa concha exterior da pessoa que os outros habitualmente vêem - que insípido, oco, inútil e pesado se tornaria o mundo! Um mundo onde não seria possível viver. Quando no autocarro ou sobre os carris do metropolitano encaramos os outros, estamos ao mesmo tempo a olhar para o espelho; é por isso que se torna possível vermos então como os nossos olhos são vagos, vítreos. E os romancistas do futuro darão uma importância crescente a estes reflexos, porque não há apenas um reflexo, mas um número quase infinito deste género de refracções : aí estão as profundezas que os romancistas do futuro terão que explorar; esses os fantasmas que terão de perseguir, deixando cada vez mais de lado as descrições da realidade, pressupondo-a já suficientemente conhecida pelo leitor, como fizeram também os Gregos e Shakespeare, talvez - mas estas generalizações começam a parecer-me inúteis. As ressonâncias militares da palavra "generalização" são evidentes. Lembra-nos uma série de dispositivos destinados a conduzir as pessoas, gabinetes de ministros - toda uma quantidade de coisas que em crianças  pensámos serem as mais importantes, os modelos de tudo o que existe, e de que não poderíamos afastar-nos sem incorremos no risco da condenação eterna.

Virginia Woolf, "The Mark on the Wall" [1921], A Haunted House - The Complete Shorter Fiction, Vintage 2003. Tradução portuguesa: "A Marca na Parede", A Casa Assombrada, Tradução de Miguel Serras Pereira, Relógio d'Água, 1984

sábado, 16 de janeiro de 2016

a fenda, a estrada. Kiarostami.






 




1&2 Onde fica a casa do meu amigo? (Khane-ye doust kodjast) ABBAS KIAROSTAMI 1987
3      O vento levar-nos-à ( Bad ma ra Khahad bord)  ABBAS KIAROSTAMI 1999





a c o n t e c i m e n t o s


Um acontecimento tem sempre uma parte que ainda não aconteceu e uma parte que aconteceu plenamente. Mas quando se esgota o acontecimento já não há acontecimento. Parece ser um mas não é, é sempre outro e ainda outro e outro. É sempre uma espécie de manada deles, sem número definido. Como se define o número de uma manada? Define-se pela sua expressão vital. A vida define. Acontecimento é uma palavrinha que tem um sentido para toda a gente, mas não é o mesmo sentido. A maneira como esta palavra me aparece, o som, a expressão, engloba tudo isso que sempre escapou e sempre terá de escapar às designações e classificações de signos da Semiótica ou da Linguística. O acontecimento não existe sem um excesso em relação a ele, mas é algo de extremamente singular, quer dizer, não se confunde com o resto, sobressai sempre, ainda que muitas vezes passe despercebido. A c o n t e c e r, todos sabemos, é a coisa mais simples, mais subtil, mais natural, mais fugaz, mais deliciosa, do mundo, mas é também a mais difícil, mais óbvia, mais estranha, mais lenta, mais dolorosa do mundo. Em todo o caso, acontecer só acontece quando necessário. Sabemos quando acontece, mas não sabemos o quê. Sentimos que é um não sei quê, um quase nada ou um quase tudo. Uma espécie de charme que nos envolve um pouco ou totalmente, como um odor, um sabor, uma cor, uma paixão. Sabemos nada, quase nada sobre isto. Não há nada a saber. A c o n t e c e r acontece fora, não longe, mas absolutamente fora e absolutamente dentro, tão dentro, nas entranhas, que é absolutamente fora de tão absolutamente dentro.