domingo, 18 de dezembro de 2022

entrelinhas

No meu sonho havia a ideia de alguém de nos definirmos como "pequenas máquinas. Tentei perceber melhor e lembrei-me que não era um sonho mas a mistura de duas ideias. Pequeno esclarecimento, ideia é para mim essa imagem, essa intuição que procura a sua parte concreta, nas coisas.Por um lado a tal imagem tinha a ver com uma expressão que usa Gilles Deleuze para falar da potência em Espinosa, o filósofo da potência, que é algo como sermos "pequenas caixas de poder". Caixinhas de poder,com esse lado misterioso e surpreendente, como quando oferecemos uma prenda a alguém que está ainda fechada e pode ser muita coisa.O seu valor, enquanto caixinha, prenda fechada, é indeterminado, e esse é o valor mais importante de qualquer prenda: o de não sabermos o que pode aquela prenda.Que relação existirá com as"pequenas máquinas de poder"? Não procuro a definição,interessa-me mais as maneiras como se pensou nisso, os pedaços que criaram essa amálgama, como se fosse uma ideia clara e distinta, que não é de todo, e são essas misturas que a fazem não o ser que originam pensamentos nas entrelinhas que se trata de recuperar, esses pedaços de vida, sensações, pequenas percepções, caídas por aí ao desbarato. A imagem das "pequenas máquinas" de poder tem a ver com uma aplicação que descobri ontem: colocamos os dedos no ecrã do smartphone e avaliam não só a nossa frequência cardíaca, mas o nível de depressão e o nível de outras emoções que agora não lembro. Uma aplicação que avalia numericamente emoções! Virei a atenção para outras coisas mas esta ficou lá, mal resolvida e ainda bem, a misturar-se com os outros pensamentos soltos. Estas pequenas "máquinas de poder" que a aplicação procura definir e determinar, medindo níveis emocionais, são o diametralmente oposto das "pequenas caixas de poder", no sentido que Deleuze retira da leitura de Espinosa, que podem surpreender e esperar um outro mundo.

sábado, 26 de março de 2022

estremecer


sentia que guardava um segredo mas não tinha sido escolhida sua guardiã. a guarda acontecera por mero acaso, num dos seus habituais exercícios de atenção às pequenas coisas. 
estava num banco de jardim, a ler e a apanhar sol. parecia abdicar de alguma coisa, não sei o quê, mas numa absoluta e ideal dedicação ao ciclo habitual das pequenas coisas e à espuma dos dias.

da indecisão sobre o suposto segredo brotavam calafrios no corpo, sonhos feitos de planos muito longos em que se perguntava continuamente se estaria acordada ou a dormir, vontade de comer chocolate amargo ou outros alimentos agridoces. dela vinha, sobretudo, um estranho estremecer, suspenso numa certa esperança envolta em nuvens que esfumavam contornos.

sentia-se bem a olhar para os aqueles olhos feitos de mar. por vezes descobria sem nenhuma intenção, para além do puro jogo, que algum olhar acidentalmente se traduzia em gestos, entre as palavras ditas, o silêncio e as muitas por dizer.
a atenção, particularmente apta a perceber tudo o que era pequenino e minúsculo, tão própria de um estado de limiar, era capaz de coisas improváveis: distinguia no cheiro da terra molhada tonalidades precisas de odores, de gente perfeitamente esquecida, de objectos há muito perdidos, de instantes singulares que julgava desaparecidos.
era um tempo de reencontros e de encontros, da impossibilidade de os distinguir, numa expectativa  tingida pelo lugar, o vento, o sol, a chuva, a vida, complexa. 
o hábito cessa. o tempo é ocasião.
tempo perfeito imperfeito. aberto - mais que aberto - escancarado. 
como as fissuras tão brutais dos rochedos de uma praia que, depois de se atravessarem, parecem para sempre habitar os meandros da nossa alma,  abrindo de antemão caminhos que hão de vir.
decido não apagar estas linhas e faço um café.
noutra escala, noutra visão, isto também está nesta sensação que sinto ao mexer o café. todos os tempos contraídos num só tempo, elementar. o movimento do café, a espuma que na chávena dança uma dança do universo. mergulho nas formações espumosas da chávena sem asa, uma chávena que viera de uns tempos de uma outra vida, ainda com uma asa, uma vida que tinha como se fosse minha. entro no ritmo oceânico da espuma do café e dos seus desenhos anamórficos, procurando neles a indecisão, o segredo, as personagens e as cenas perdidas no anonimato.

(escrito em 29/07/2017)

mania

sempre esta mania louca de querer saber quem somos
se carne ou peixe, se vegan
se a favor ou contra,
se mulheres, se homens,
do norte ou do sul,
se brancos, se pretos, se vermelhos, azuis,
se dos andares de cima dos prédios ou das caves profundas,
se da língua mãe, do dialecto ou do calão
se filhos legítimos, se bastardos
sempre esta mania de ver que espécie sujeito e
entre que espécie de sujeitos se está, se quer estar, se vai estar

e não se sabe o que se pode fazer e não se sabe o quanto
'o que posso fazer por si', que a senhora da mercearia deixa sair da boca
é a questão e que questão, na boca do mundo e sem nenhum proveito
o poder, o não poder, que esquecidos que estão,
reduzidos a uma ou duas expressões linguageiras sem importância 
o que pode fazer por nós
o que posso fazer por si?
boa tarde,
o que posso fazer por si?


2017
talvez, quando se acredita que não se está vivo, que não circula sangue nas veias, que a voz ou é eco ou ideia, mero vestígio, anterior ou posterior, que não há de si visibilidade alguma, talvez duas coisas opostas sucedam: uma extrema, histérica presença e uma completa ausência de traços expressivos numa ataraxia crónica. talvez por isso a figura que tão bem conheço, de sonhos, talvez de outros encontros e de misturas entre os sonhos e as realidades, esteja sempre nesta ambivalência. 

2017

personagens provisórias ou conjuntos de traços


Há uma coisa que os miúdos fazem imediatamente antes de começar uma brincadeira - pode ser com bonecos da playmobil ou de um filme qualquer, ou mesmo de uma imagem de uma revista - eles transferem-se imediatamente para lá, começando por definir o seu papel: - eu sou este (pode ser um homem, uma flor, uma pedra). E se estiverem vários a brincar fazem-no em grupo - eu sou esta, eu sou este, eu sou aquele. Antes de mais nada há uma personagem a que se adere. Durante a brincadeira, experimenta-se ser assim e assado, vê-se o que dá e não dá para fazer, o que é que a personagem pode fazer, de que truques é capaz, que poderes tem. Depois há outra imagem, outro filme, outras figuras, e volta-se e entrar no papel que se escolhe ou que calha e volta-se a experimentar e a avaliar potências e assim vai-se vivendo uma sucessão de pequenos papéis e essa escolha não parece assim completamente arbitrária no que se refere à pessoa que escolhe, às vezes é mais outras vezes é menos casual e eventualmente vai definindo uma espécie de estilo. Mas o que é interessante na necessidade de um papel para que a brincadeira avance, para que haja a mais pequena acção, é que quando se escolhe ser este ou ser aquele, escolhe-se sobretudo um conjunto de traços expressivos que se vai experimentar, como se se estivesse a experimentar uma roupa por cima da pele. Experimentam-se maneiras de ser, expressões que estão já misturadas com sujeitos, temas e significados. E não há outra maneira de brincar. Escolhe-se uma figura (que também pode ser um cliché, mas não é só um cliché) que tem estas e aquelas qualidades que se vão experimentar e quando a escolha é imediata, sem escolher quase, faz-se com qualidades expressivas (é uma cor, uma tonalidade, um som, um material, etc., que captou a atenção). Assim, antes da menor acção e para que a brincadeira continue o seu movimento, há uma necessidade de aderência a esse conjunto expressivo de traços que constitui uma personagem sempre provisória...


(texto de 2017)