sábado, 26 de novembro de 2016

sem título

Vamos imaginar. Ou vamos ver. Não parece difícil mas é preciso, para ver, uma espécie de método contra-imaginário. Talvez suficientemente abstracto para conseguir pensar e suficientemente concreto para conseguir sentir.
Há vinte anos encontrámos alguém. Não importa se era homem ou mulher, se era jovem ou velho. Foi há vinte anos, mas também isso pouco importa. Importa que houve um encontro. Como terá sido esse encontro.
Vamos ver. Desço uma rua a correr. Olho em frente. Por acaso e num lapso de tempo olho para o lado, sem nenhuma razão de ser. Do outro lado da rua, do lado direito,  há uma tasca. Vejo a porta aberta e o seu interior, escuro, que contrasta com a luz branca do exterior. Em movimento, o meu olhar passou pela porta e por parte do interior da tasca, em particular pelo olhar de alguém que parecia olhar-me. Em movimento, a descer a rua, acidentalmente, num desvio, dei-me conta de um olhar que me viu, do interior de uma tasca. Continuei a descer. Mais tarde voltei a subir a mesma rua. Subo a rua, agora pelo lado da tasca. Entro. Sento-me. Lá estava o indivíduo, o portador dos olhos que me tinham fitado. Olhou-me. Disse qualquer coisa levantando-se e aproximou-se da minha mesa, confirmando que ainda há pouco me tinha visto a descer a rua. Não havia dúvidas, tinha ficado com a minha imagem. Senti-me estranha e como que incomodada. Era como se possuísse algo que me pertencia. Descreveu-me o que viu. Não era eu, pensava. Seria eu, pensava. Descrevi-lhe o que vi. Não éramos nós, nem o que víamos era um ao outro, mas também havia nós e também havia um ao outro. Mas o que havia mais era essa visão estranha, nem minha nem dele. Uma visão, extremamente parcial, que tinha sido como que trespassada pela possibilidade do todo, como se uma fagulha prestes a incendiar tudo à sua volta, movida por uma intensa curiosidade. Encontro. Uma visão descobre noutra visão o desejo que a conduz. E mais, e o que viste mais? E o que vês agora? E ali, e mais adiante? E um bocadinho mais para aqui?

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Simulacros

... tal como uma membrana arrancada às superfícies das coisas, vão por todo o lado esvoaçando pelos ares.

Lucrécio

domingo, 6 de novembro de 2016

nunca no interior da casa

I will never again mention love or death inside a house...*

Não só perante os ciprestes não falarei nunca do amor e da morte no interior da casa
mas posto nos recessos (da terra), a contra-luz e em cor de ébano - está a imagem da noite na retina negra,
pelos nervos obscuros. No anverso
dos ramos a bainha da folha distingue a face sombria
da iluminada, até que a noite as suprime (paisagem) do olhar,
mas nunca na sua memória; nunca no interior da casa,
só no lugar exterior que não a circunde,
nem se implante (nele) (a casa), nem veja a sua direcção
(o vácuo) e, água sob este cipreste, o amor assim como a morte hão-de formar-se
do dom do desespero - dado a lugar mais extenso
com os relevos do solo e as formas livres: desejo, o ter.**

* Walt Whitman. Leaves of Grass.
** Fiama Hasse Pais Brandão. Desejo, o ter.