terça-feira, 13 de junho de 2017

A cómoda de Aquarius


    







A cómoda de "Aquarius", de Kleber Mendonça Filho, a cómoda de Clara, não é de Clara. É Clara que é da cómoda. A cómoda é uma experiência, um desejo, um gesto, que atravessa a vida de Clara, mas também da tia Lúcia. Atravessa-a como um vento, um mar, uma chuva, algo da ordem da natureza que necessariamente nos ultrapassa, algo que não podemos possuir, mas que nos possui a nós. É uma experiência, um desejo, um gesto que atravessa uma vida. Não se trata de um pequeno jogo metonímico, de uma imagem que não é o que parece ser. Também é isso, o erótico por detrás do pornográfico, o obtuso por detrás do óbvio, para chamar aqui conceitos de Roland Barthes. Trata-se de uma forma - mas uma forma de força - de conectar camadas de sentido. A cómoda é, neste filme, um conector afectivo, um signo que conecta coisas. Costumo dizer, quando falo de conectar, a partir do conceito deleuziano de "connectivité", que não dá, como muitas vezes vejo fazer, para traduzir conectar por ligar ou associar. Ligar ainda vá. Mas associar não. Não se trata de associar nada. Conectar está ligado a uma coisa energética, como conectar uma tomada a uma saída de electricidade, como conectar dois pólos de energia. Haver conexão é haver passagem de energia entre objectos, pessoas, coisas. Ou conecta ou não conecta. E há padrões que conectam movimentos vitais de seres completamente heterogéneos, como nos disse Gregory Bateson.... Não são ligações mentais, não são conceitos racionais, não são lembranças. São conexões afectivas, energéticas. São conexões de desejo. A cómoda, neste filme, é um conector deste tipo. Como a madalena de Proust, que também não é simplesmente um signo rememorativo, mas sobretudo um signo que tem a potência de conectar coisas e de fazer passar o desejo, tem a potência de criar uma passagem, ligando certas coisas em particular e não outras. Esta cómoda percorre todo o filme. Como memória, como presente, actual, como fantasma, face ao medo da morte. Mas sobretudo como desejo, um desejo que está longe de se limitar ao desejo sexual, mas que é puro desejo, de resistir, de vida e de revolta. Muita coisa se podia dizer ainda sobre esta cómoda...

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