sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

acrobacias de um poliglota imaginadas por um poeta

(o bebedor nocturno)

Já me aconteceu imaginar a vida acrobática e centrífuga de um poliglota. Suponho o seu dia a dia animado por um ininterrupto movimento de deslocações, transmutações, permutas e exaltantes caçadas de equivalências, sob o signo da afinidade. Vive das significações suspensas, da fascinação dos sons que convergem e divergem - e há nele, decerto, um desespero surdo, pois que na desunião dos idiomas busca a unidade improvável. Multiplicando as operações de propiciação da unidade, ele caminha irradiantemente para a dispersão. Descentraliza-se. Existe em estado de Babel. O seu pensamento, partindo do hebraico, dá um salto quase místico no latim e cai de cabeça para baixo no grego antigo. É um aventureiro completamente perdido, o meu poliglota cheio de malícias linguísticas. Faz disparates destes: verte de nauatle para esquimó, emocionando-se em banto e pensando em chinês, um texto que o emocionou por qualquer ressonância árabe. Também pega na palavra "cravo" e tradu-la para quinze línguas. O cravo é cada vez menos cravo. É uma colorida e abstracta proliferação sonora. Então, ele junta ao cravo aramaico o adjectivo turco "branco". Encontra-se, neste momento, em plena vertigem paranóica-idiomática. É um perfeito irrealista - e eu amo-o, à distância.

Quanto a mim, não sei línguas. Trata-se da minha vantagem. Permite-me verter poesia do Antigo Egipto, desconhecendo o idioma, para o português. Pego no Cântico dos Cânticos, em inglês ou em francês, como se fosse um poema inglês ou francês, e, ousando, ouso não só um poema português como também, e, sobretudo, um poema meu. Versão direta, diz alguém. Recriação pessoal, diz alguém. Diletantismo ocioso, diz alguém. Não digo nada, eu. Se dissesse, diria: prazer. O meu prazer é assim, deambulatório, ao acaso, por súbito amor, projectivo. Não tenho o direito de garantir que esses textos são traduções. Diria: são explosões velozmente laboriosas. O meu labor consiste em fazer com que eu próprio ajuste cada vez mais ao meu gosto pessoal o clima geral do poema já português: a temperatura da imagem, a velocidade do ritmo, a saturação atmosférica do vocábulo, a pressão do adjetivo sobre o substantivo. Uma pessoa pergunta: e a fidelidade? Não há infidelidade. É que procuro construir o poema português pelo sentido emocional, mental, linguístico que eu tinha, subrepticiamente, ao lê-lo em inglês, francês, italiano ou espanhol. É bizarramente pessoal. Mas não há fidelidade que não o seja. Senão, claro, a ainda mais bizarra fidelidade gramatical que, de tão neutra, não pode ser fidelidade. Alain Bosquet prevenia algures as pessoas contra essa espécie de fidelidade. Não levantava, ele, sérias reservas ao facto de se traduzir um poema húngaro desconhecendo o húngaro, e dizia: faça-se um poema francês (dirigia-se aos poetas franceses). Porque Bosquet só admitia que fossem poetas a praticar a versão de poesia. Um bom aliado, este Alain. E agora, que já disse tudo, digo que não gosto de justificações. A regra de ouro é: liberdade. E pede-se desenvoltamente ao leitor: que leia aqueles poemas o mais livremente que puder.



Herberto Helder. Photomaton & Vox. Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, pp. 71-73.

isto ainda existe e é verdadeiro, apesar de tudo


(palavra visível)

Apesar de tudo, há ainda as palavras que nos metem medo. Delas irrompe a cega proliferação das imagens. Porque, se ao princípio era o nome, foi dos nomes que nasceram as coisas. Esta realidade suscitada ardentemente pela palavra passa a viver sobre a rede dos nossos sentidos: respira encostada aos pulmões, lateja no sangue, crava-se na cabeça como uma coroa negra. Que fazem os objectos neste espaço tão resolutamente quotidiano? Sim, fazem a nossa vida. A sua acção é o prolongamento do desejo e da malícia da voz que os nomes habitam com a selvajaria vegetal de um paraíso. Se o corpo se levanta do sono, e na própria matéria do adormecimento se formula uma regra do desejo - a palavra torna propício este universo de pedras redondas, águas, madeiras, bichos trémulos, pessoas que nos contemplam de repente. Somos agora a paisagem para a paisagem. A obra do nosso primeiro impulso olha para nós. Somos o imaginário do imaginário. Tens medo? - pergunta-nos a palavra MEDO. Tens medo? Pergunta-nos o MUNDO sensível, visível forma dessa palavra. E a nossa homenagem à invenção é uma pura urgência de medo. Assim caminhamos por entre os objectos domésticos da fé, com a comovida ironia de que, se eles dependem de nós, o nosso destino é dependente do modo como se encontram suspensos sobre a nossa cabeça. Podemos morrer da familiaridade com uma palavra: com a palavra CORPO, por exemplo. Porque esse corpo se fez nosso e é o nosso corpo. Desta maneira, morremos de ter corpo. Se ele estremece, respira, transita, subverte e multiplica noutros corpos a sua funda vocação e provocação de corpo - nele se encontram o súbito reconhecimento e amor do perigo. O corpo morre. Isto ainda existe e é verdadeiro, apesar de tudo. Falo, evidentemente, da realidade. Quero dizer: da poesia. Trata-se da única coisa grave que há, da única coisa simples e frágil. E por isso ironizável. O jogo, o acaso, o alarme, o desafio do espírito e - claro - o ludíbrio.

Herberto Helder. Photomaton & Vox. Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, pp. 57-58.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

línguas secretas

As crianças são mágicas, ou acreditam em poderes mágicos. Mas o confronto com a descrença generalizada do adulto é, para elas, avassalador. Diz Walter Benjamin, que a primeira experiência que a criança tem do mundo não é a de que “os adultos são mais fortes, mas a sua incapacidade de magia”. Há um momento em que as crianças põem à prova o adulto: querem saber o que lhes espera, talvez, mas sobretudo, têm de saber como se relacionar com esse ser que lhes é ao mesmo tempo tão próximo e tão distante, o adulto, que não acredita na magia. Então, ela faz-lhe todo o tipo de perguntas: sobre deus ou os deuses, sobre as fadas, as bruxas, os duendes da floresta, os poderes da natureza. As crianças têm poderes: o poder do fogo, do gelo, do mar ou dos ventos, o poder de abrir portas com um “abre-te-sésamo” ou com chaves mágicas – é assim que elas se relacionam entre si, nas suas brincadeiras, e ultrapassam o adulto com a velocidade da luz. Transformam-se facilmente noutros, são plásticas e moldáveis. Fazem corpo com aquilo que lhes é estranho, num espaço de encontro, retomando e desenvolvendo o gesto que as coisas e os seres lhe oferecem. Trocam de papéis, saltam entre universos heterogéneos. Têm os elementos primordiais à flor da pele e sabem usar o gesto fundador da linguagem das palavras: o nome. Quando as crianças já dominam relativamente a sua língua materna, vem a fase das línguas secretas, em que a língua é virada ao contrário, desmembrada, misturada com outras línguas, sons secretos da natureza, códigos gestuais e caretas, e todo o tipo de posturas animais, vegetais ou monstruosas. As línguas secretas são uma espécie de floresta encantada em que tudo está materialmente ligado entre si: com os seus esconderijos verbais, os seus rios que desaguam em lagos, criando novos sentidos, palavras-montanha, com as suas nascentes na rocha, de onde correm, livres como o fluxo das cascatas, frases e mais frases feitas de sentidos por vir. O gesto da criança, quando inventa uma língua secreta, é um gesto de libertação do nome.
Diz-nos Giorgio Agamben, a partir de Kafka, que a essência da magia não cria, mas chama e que se chamarmos a vida pelo nome justo, ela vem (e é nisto que consiste a felicidade). Nas antigas tradições de cabalistas e necromantes a magia é, essencialmente, uma ciência dos nomes secretos, em que cada coisa ou ser tem, para além do seu nome manifesto, um nome secreto ou um arquinome, ao qual não pode deixar de responder. O necromante é aquele que garante para si o domínio sobre as potências do espírito, a partir da sua decifração de nomes diabólicos ou espirituais. Mas há uma outra tradição cabalista, “em que o nome secreto não é tanto a chave da sujeição da coisa à palavra do mago, quanto, sobretudo, o monograma que sanciona a sua libertação com relação à linguagem”. Quando o nome secreto – que era o nome a partir do qual a criatura tinha sido chamada do Éden – foi por ela pronunciado, os nomes manifestos e toda a Babel dos nomes acabou em pedaços. É por esta razão que o nome secreto chama a vida e a felicidade, pois ele é esse gesto com o qual a criatura é restituída ao inexprimível. Neste sentido, a magia dos nomes secretos, não é tanto o conhecimento dos nomes, mas o desvio em relação ao nome. Quando as crianças inventam uma língua secreta, quando elas conseguem desfazer-se do nome que lhes foi imposto, inventando um novo nome, elas ostentam, como refere Agamben, entre as mãos, o passaporte que as conduz à felicidade: “livre do nome, bem aventurada, a criatura bate à porta da aldeia dos magos, onde só se fala por gestos”.