segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Andar à procura daquilo que se está a dizer


Estamos confusos. Um dos sinais originários da nossa confusão é preocuparmo-nos com as palavras, quando subitamente descobrimos que não percebemos do que é que estamos a falar. Esforçamo-nos então por encontrar meios e modos para determinar isso de que estamos a falar sem saber (arte, obra de arte, valor, bem, mal, água, longe), isso de que falamos sem cessar, o que mostra, em primeiro lugar, que podemos falar daquilo que não sabemos e, em segundo lugar, que constantemente falamos daquilo que não sabemos, para acabar por descobrir que nós só falamos assim ou que falar implica essa experiência, porque a palavra é sempre uma palavra partilhada, recebida, herdada, com a qual, de cada vez, qualquer que seja o modo por que se faça , nos temos de comprometer. Ora, isto testemunha o gesto originário inerente à linguagem humana: andar à procura daquilo que se está a dizer; quer dizer, na sua forma mais autêntica aquilo de que falamos e não sabemos (sem o saber ainda ou já sem saber) pode vir a tornar-se em qualquer coisa de que andamos à procura, a matéria de um inquérito em que as nossas palavras se convertem e nós com elas. O nosso ponto de partida é já sempre o caos - sustentado e definido por essa coisa tão frágil, por esse assento tão ténue, que é querer dizer qualquer coisa a alguém e a nós próprios -, sempre o caos, a indeterminação, impressões dispersas, esquecimentos e repetições, muitas vozes gritando ao mesmo tempo, tudo bem caldeado pelos demónios da historização: ao nosso dispor todos os arquivos, todas as enciclopédias, todos os bancos de dados, todas as definições. Trata-se de consumir imediatamente o momento presente no momento que há de vir, perder, perder, sempre o momento, dissipando-o em múltiplos domínios isolados, que se combatem reciprocamente numa fúria de autojustificação. É a esta atmosfera que Hermann Broch chama o elemento trágico da nossa época.

Maria Filomena Molder,  O Absoluto que pertence à terra, Edições Vendaval, 2006, p. 14

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