Estamos
confusos. Um dos sinais originários da nossa confusão é preocuparmo-nos
com as palavras, quando subitamente descobrimos que não percebemos do
que é que estamos a falar. Esforçamo-nos então por encontrar meios e
modos para determinar isso de que estamos a falar sem saber (arte, obra
de arte, valor, bem, mal, água, longe), isso de que falamos sem cessar, o
que mostra, em primeiro lugar, que podemos falar daquilo que não
sabemos e, em segundo lugar, que constantemente falamos daquilo que não
sabemos, para acabar por descobrir que nós só falamos assim ou que falar
implica essa experiência, porque a palavra é sempre uma palavra
partilhada, recebida, herdada, com a qual, de cada vez, qualquer que
seja o modo por que se faça , nos temos de comprometer. Ora, isto
testemunha o gesto originário inerente à linguagem humana: andar à
procura daquilo que se está a dizer; quer dizer, na sua forma mais
autêntica aquilo de que falamos e não sabemos (sem o saber ainda ou já
sem saber) pode vir a tornar-se em qualquer coisa de que andamos à
procura, a matéria de um inquérito em que as nossas palavras se
convertem e nós com elas. O nosso ponto de partida é já sempre o caos -
sustentado e definido por essa coisa tão frágil, por esse assento tão
ténue, que é querer dizer qualquer coisa a alguém e a nós próprios -,
sempre o caos, a indeterminação, impressões dispersas, esquecimentos e
repetições, muitas vozes gritando ao mesmo tempo, tudo bem caldeado
pelos demónios da historização: ao nosso dispor todos os arquivos, todas
as enciclopédias, todos os bancos de dados, todas as definições.
Trata-se de consumir imediatamente o momento presente no momento que há
de vir, perder, perder, sempre o momento, dissipando-o em múltiplos
domínios isolados, que se combatem reciprocamente numa fúria de
autojustificação. É a esta atmosfera que Hermann Broch chama o elemento
trágico da nossa época.
Maria Filomena Molder, O Absoluto que pertence à terra, Edições Vendaval, 2006, p. 14
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