domingo, 29 de abril de 2018

Agosto

estar um pouco no mês de agosto, ou setembro...
nada é comparável ao agosto da nossa infância. as férias do verão, a praia e o mar, a luz, o corpo que eram uma coisa só, um acontecimento que se ia desenrolando em praia, corpo a rebolar na areia, depois enterrado na areia molhada, depois ao sol, as uvas misturadas com areia, calor extremo na pele, a queimar, antes do mergulho no mar, a família, os amigos, os encontros. é verdade que vivendo-se nem que seja por uma temporada de férias perto do mar, há uma metamorfose qualquer, uma troca elementar entre essas coisas todas, a pele dos corpos que fica mais salgada e escurece, as rochas, a brisa das noites longas que parecem não ter fim, os elementos minerais, aquáticos, terrestres, os cheiros todos misturados com o calor que a terra emana. mas não é como o agosto da nossa infância, de gestos sem finalidade à vista para além do seu estar sempre meio inebriado, demasiado lentos ou demasiado eufóricos, gargalhadas só porque apetece, toda essa mistura de sensações que bebemos na mão aberta de agosto. que será que marca tão intensamente o agosto da nossa infância, que não volta a repetir-se, pelo menos não por inteiro. mesmo se voltamos àquele esconderijo, àquela rocha naquela praia, àquele canto da casa perto da varanda, onde nos sentávamos a apanhar uma nesga de sol a comer nêsperas. a nossa experiência desses lugares será sempre a da infância, apesar de todas as outras vezes que voltámos aos mesmos lugares, a terceira e a quarta e tantas outras. será que só a primeira vez é singular, porque à segunda já não vivemos a experiência num estado virgem qualquer, como um mundo para ser vivido, uma realidade objectiva naquele espaço e naquele tempo? será que da segunda vez e da terceira e da quarta já não vivi objectivamente a realidade por tê-la já, em parte, em mim, dentro de mim e interiorizada? será que pouco a pouco deixamos de viver objectivamente esses mundos todos que há para viver porque já temos o nosso mundo em nós, o mundo todo em nós? o inferno interior do próprio mundo. talvez na infância o mundo fosse sempre estrangeiro e nunca próprio, sempre um saltar para fora de si, um mergulho para outro sítio, uma caminhada alhures. e talvez a infância não conhecesse o tempo, ou pelo menos o tempo interior que tudo envolve num horizonte circunscrito a um antes e a um depois, em que o agora desapareceu. talvez a dada altura, algures no início da nossa juventude, uma certa maneira de viver o tempo venha a nós (ou nós a ela) e transforme por completo a nossa experiência e então marca-nos sobretudo o princípio e o fim do verão, a intensidade das banalidades desconhecidas mas excepcionais do agora é substituída pelos igualmente intensos momentos de expectativa e de angústia. momentos de puro tempo subjectivo. passamos de repente a viver intensamente o antes do agosto começar e o antes do agosto acabar. a expectativa e a terrível angústia. vivemos a morte das férias, a nossa morte. o fim do verão, como que numa lenta agonia. na infância as férias chegavam de repente, terminavam mais ou menos abruptamente, estávamos fora do tempo ou num tempo que só tinha o meio e nunca o antes e o depois e sempre ocupados com outros mundos. agosto era inteiro e nós inteiros no mês de agosto, "escarranchados no lombo nutrido de agosto"...

quinta-feira, 26 de abril de 2018




pura potência. não é uma questão de força corporal, nem mental .não tem nada a ver com a imaginação. acontece noutros lugares, que passam entre os imaginários e os nossos eus. espécies de ilhas, traçadas às cegas, que por um estranho movimento de repetição circunscrevem uma zona intensiva no imenso deserto, feita de linhas, traços que se escrevem sem qualquer tipo de linguagem. mas sempre essa espécie de baloiçar, sem nenhum fim para lá do movimento infinito que nunca se cansa, como o andar à roda da criança, no momento em que o jogo se ultrapassou em direcção a nada. o que é? o que é que a estava a agarrar quando estava quase no abismo, antes de cair? dança obstinada, ensimesmamento ausente, exterior. puro ritmo, bruto.

quinta-feira, 19 de abril de 2018



n-n-não s-ssaber q-quaando será a ho-ho-ho-ra. n-n-não p-po-der, po-po-der v-ver. r-romp-per o d-dia ou-outra vvez s-sem s-saber. te-ter f-fo-mme e nnã-o t-ter co-co-mo co-me r. i-ma-gi-n-nar, dde-ntro po-dde-r i-ma-gi-n-ar, dde-entro. pôr u-um p-pé de-po-poiss d-do pé e pass-o de-pois de pa-paa-sso avançar ppp-pou-co, m-mmmas avan-çar s-sem o-o-olhar, à-às c-cegas.  g-gosta m-m-mais c-com o-os o-o-lh-os fe-fecha-do-dos. po-por-que p-poss-o im-ma-gi-n-ar. n-n-nunca m-mais vi-viu o-o sss-céu, n-na-da lá pra ci-cima, s-só o ch-chão, s-só o ch-chão a-a-abrir-brir-se.