sábado, 15 de julho de 2017

gritos e cantos



Todos sabem que, nos pássaros, se distinguem os gritos e os cantos. O grito de alarme, por exemplo, não é um canto, os ornitólogos teriam muito a ensinar-nos se conseguissem dar-nos distinções claras entre o canto e o grito. Mas posso dizer que, também na filosofia, há discursos e os discursos não são a mesma coisa que os gritos, os discursos são o canto dos filósofos. A sua maneira de cantar. E há também gritos filosóficos. Arriscamo-nos a passar ao lado deles, a partir do momento em que se faz da filosofia uma coisa morta. Assimilamo-la ao discurso que ela desenvolve e um grito filosófico pode sempre ser traduzido em termos de discurso.  Mas eis que há alguma coisa que resiste e que, se temos o menor gosto pela filosofia, sabemos que são gritos e que neles a filosofia encontra os pontos do seu nascimento, da sua vida.

E o que são? Pois à primeira vista arriscamo-nos a confundi-los com simples proposições que fazem parte do discurso, mas não, não, não, trata-se de outra coisa... então a que reenviam eles? e porque é que eles são fundados, não fundados, arbitrários? O que é que faz com que um filósofo lance um grito filosófico?  Dizia que os gritos de alarme dos pássaros não são cantos, mas pelo menos sabemos porque é que lançam um grito de alarme, e há outros gritos, para além dos gritos de alarme, gritos de amor, que não são a mesma coisa que os cantos nupciais. Assim, se o filósofo é alguém que, à sua maneira, grita, o que há para gritar? Procuremos exemplos.

Leio Aristóteles e vejo um discurso admirável que é o canto de Aristóteles e reconheço esse canto, uma maneira e cantar que não tem equivalente, não confundo o canto de Aristóteles com o canto de Platão.  Depois, eis que de repente, ao ouvir Aristóteles, vou de encontro à fórmula "É preciso parar".  Ah, se se estabelecesse uma verdadeira análise das proposições... quando Aristóteles nos diz o que é uma substância ele desenvolve-o num discurso-canto. Quando ele nos diz "é preciso parar", já não se trata de uma proposição da mesma natureza, "é preciso parar", é um grito. O que é que isto quer dizer? Quer dizer: não se volta atrás, mas aqui, é curioso, trata-se de um tipo de proposições que, mesmo escritas, não podem exprimir-se senão sob a forma da interpelação. Não é preciso dizê-lo explicitamente.  Ele diz-nos "vocês não podem remontar ao infinito de um conceito por um conceito mais geral", "é preciso parar", ou seja, há conceitos últimos.

Eu cá não sei se há conceitos últimos ou não, nem vocês... Mas isto é vos dito por alguém e só pode ser dito sob a forma de um grito:

é preciso parar, subentenda-se, é preciso que o pensamento pare, nalguma parte, que alcance esse ponto a partir do qual não pode ir mais além.

Não digo é certo ou é errado, é uma questão de sentimento, não estou a tentar convencer-vos de nada, mas tenho a sensação de que isto já não faz parte do discurso filosófico, é um grito filosófico.  Se lhe perguntarmos e porquê, porque é que é preciso parar? A questão não se coloca, sequer. Pois ali, alcançámos um ponto onde a filosofia já não tem de dar as suas razões. A que se dirige, então? Talvez ao que há de mais importante naquilo que é dado, o oculto da filosofia.

  
Gilles Deleuze, aula 67, Cinéma et Pensée, de 30/10/1984 - 2





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