segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

andávamos tão longe.
quando?
ainda agora, há pouco, antes de nos reencontrarmos.
sim, pois era.
andávamos por aí. é preciso, andar por aí.
sim, pois é.
mas agora estamos perto. muito perto desse lugar onde queremos estar.
estamos. tão perto. já nem o vemos.
sim. só se consegue ver a uma certa distância.
aqui não é para ver. é tudo absoluto ou é para ver loucamente e ouvir absurdamente e sentir insuportavelmente.
até termos de fugir.
porque não te perdes aqui?
não sei se nos podemos perder a dois. perdemo-nos um ao outro, reencontramo-nos um ao outro, voltamos a perder-nos e a reencontrar-nos um ao outro.
tens razão.
não nos perdemos de nós mesmos.
então vai.
vou.
desejo-te a melhor perdição.
sim, e eu a ti.
até ao nosso reencontro.
sim, até lá.
mas não vás já, vamos dormir juntos um bocadinho, está muito frio.
sim, vamos. 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

bom dia, é o costume?


entre uma e outra trinca na torrada de mastigação tão barulhenta, estende-se um rio sonoro feito de inumeráveis matérias de vários feitios. despeço por um momento os olhos. uma voz feminina televisiva relata notícias ... espanhol... o caso já considerado... uma operação... as unidades de protecção ambiental.... outra voz televisiva, o mesmo tom. mais perto da minha mesa uma espécie de sussurrar, a voz muito baixa, que se parece com um grunhir, esforça-se por articular essa coisa estranha a que chamamos palavras. passos. o som do balcão é o enorme reservatório, é de lá que tudo vem e onde tudo vai dar. tilintar de colheres no vidro, som do exaustor da máquina de café, outro que se assemelha a uma torneira a correr água, chhhhhhhhhh, um ritmo dado pela batida, geralmente três vezes, que o empregado faz quando deita fora as borras velhas de café para tirar o outro café. toctoctoc, tatatatatata, panampanpam. bom dia, é o costume? cadeiras a arrastar-se. passos. momento publicitário da tv e música... não consegues pagar? vá lá, desculpa lá...  mas quando?... há um ano e tal... está mesmo mal. aconteceu-me o mesmo, só que é nas costas... risos. pois, pois.... manteiga?... entra a máquina do café, toctoctoc e a água a correr, chhhhhhhhhh, e logo depois o tilintar das colheres pequeninas, ...obrigada à mesma, obrigada, sabe, era para a minha afilhada, obrigada à mesma... sai uma merenda prensada e uma meia de leite, mas para ontem! ... é que a mãe já tratou do assunto... o som do autocarro passa mesmo à porta e abafa por momentos a avalanche nebulosa de sons. o suminho de laranja já está a sair, sim?... a inquilina pode e deve, repito... são tratamentos muito eficazes. cadeiras a arrastar-se. passos. tilintar de vidros, desta vez os pratinhos. digo-te, ela é igual à minha neta, não é por ser minha neta... os cabelos, os olhos, tudo... olha quem vem lá... bons olhos a vejam... um riso estridente parece furar o tecto e o rio de sensações sonoras adquire uma violenta crista. mas é fugaz. entretanto, pequeninas impressões, quase imperceptíveis, procuram reunir-se, compactar-se em grupos e criar uma espécie de onda sonora que se autonomize... mas eu pedi sem manteiga... são gestos sonoros nascituros, tentativas de separação, ínfimos sons que procuram escapar da corrente, estão às portas da consciência, às portas da vida e da morte. mas não chegam a destacar-se. ficam indistintamente no ruído de fundo, hão de sucumbir, sem chegar a existir, meras promessas sonoras ...e vai querer o quê? médio ou cheio?... toctoctoc, tatatatatata, chhhhhhhhhh. então vamos ter um menino, é? ... olá, bom dia... as taxas de glicémia aumentam... não, não, eu queria uma menina...  até logo, adeus obrigada, olhe o troco! ...eu acho que sim. quantos são? ai é? ahn?... o rio, a polifonia sonora da lorena continua enquanto arrasto a minha cadeira para me levantar ... desculpe, estava a olhar para o vazio, às vezes dá-me isto... é a continha, é? ...ai não, eu só gosto deles cozidos. tilintar dos pratinhos e das chávenas... bom dia, queria... ai já não quer? ... dois pães de mistura e quatro pães pequenos?  ... noventa e cinco cêntimos. uma bica cheia....toctoctoc tatatatatatata chhhhhhhhhhh.... então vá, até amanhã.



JLGodard. Vivre sa Vie