quinta-feira, 26 de outubro de 2017

nevoeiro


num dia como outro qualquer em que a vida vinha inteira parecia querer entregar-se às coisas pequenas, entrou no café da esquina para beber um café ou uma água. tinha agora esplanada, nesta nova cidade repleta de luz, e havia pessoas nas mesas lá fora conversando entre si, outras com os seus cães, com boinas, telemóveis, cafés e cigarros, com e sem fumo, headphones. a intenção perdera-a ao entrar, mas fez à mesma sinal ao empregado: um café, por favor. era um pretexto. talvez ali estivesse unicamente para ver entre os tectos e as mesas aquele desenho feito de subtis linhas semi-transparentes, que replicava os efeitos das paredes num jogo de reflexos de luz e profundidade. ou então para se aproximar da experiência da duração, à medida que os velhos e as velhas que chegavam do lar se iam juntando o mais demoradamente possível, num contínuo de gestos tão lentos que já eram apenas gesto, pura dança, num dos cantos da sala, para o almoço. saiu como quem sai depois de beber um café ao balcão, com a sensação de tarefa cumprida, ainda que parecesse fazer tudo parte de um esquema para poder observar o real de pleno direito, colando-se a ele como a um habitat, para não cair, como a carraça ao mamífero ou a lapa à rocha. lá fora, uma nuvem tinha descido à rua, tornando-a branca e suave, como num sonho. o nevoeiro adensava-se. viu-o aglomerar-se por entre as árvores da floresta. sentiu no seu próprio corpo essa propriedade especial e estranhamente espacial de dar provisoriamente corpo a um vazio. um corpo subtil mas concreto. fecundo vazio que não se pode ver, mas que de uma maneira ou de outra teremos todos de atravessar. sentiu-se atravessar pela sua insistência nua, o elemento húmido, a disposição melancólica. mas é tão fugaz e tão limpo, desaparecer do nevoeiro, não deixa traços. ficando apenas o desejo subtil e abstracto do atravessar e do ser atravessado.

26 out 2017

Sem comentários:

Enviar um comentário