domingo, 26 de novembro de 2023

Da densidade da prisão

Da densidade da prisão surge a voz desse outro em nós. o canto traz uma avalanche de coisas das profundezas, não sob a forma de linguagem, mas de ritmo. cântico dos cânticos, sopro vital, contorcionismo vocal, murmúrio ondino, devaneio amortecedor emudecedor dos gritos intensificados pela ausência. 

diz o poeta palestino:

"Prison is density. No one spends a night there without training his throat on what resembles singing, for that is the way one is allowed to tame solitude and preserve the dignity of pain. To hear your own hoarse voice means that your other has spent the night with you and whispered your personal news to you in a room. The narrower it becomes, the wider what lies beyond it grows. You embrace the world, infatuated with reconciliation."                                    

Mamoud Darwish, "In the Presence of Absence". Tradução do árabe de Sinan Antoon. 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Imagens e mais imagens

Quando ouvi aquela música na rádio, o aqui ao luar, dos Xutos, a impressão foi intensa. mesmo apresentando-se esbatida ou longínqua, era forte e parecia querer arrancar-me dali. A sensação de ter esquecido a fonte daquela intensidade perturbava. algo nela me era muito familiar, importante, sem dúvida, mas não me lembrava de onde. Fiz pisca para a esquerda, indecisa, pois se optasse pela lasanha feita em vez do jantar de petiscos ainda a fazer com húmus e guacamole, deveria fazer pisca para a direita, uma buzinadela de algum estressado atrás de mim, as miúdas a fofocar lá atrás e, apesar da confusão de sons e de acções sobrepostas, apesar de procurar manter-me concentrada nas minhas acções imediatas, aqueloutra impressão parecia ainda mais imediata e a sua intensidade, mesmo depois de diminuir o som da  música, para me manter atenta, destacava-se. A impressão ganhou autonomia à minha revelia. Traçava o seu próprio percurso. aquela música tinha activado um dispositivo qualquer e começavam a cair imagens e mais imagens, como na descida de Virgílio, como naquelas máquinas antigas de diapositivos, caíam e projectavam-se no ecrã da minha cabeça. Mas eu afastava-as, porque tinha de ver a estrada, ultrapassar a barreira sonora, deixar a senhora e o seu cão atravessarem na passadeira e não deixar de esboçar um sorriso. Iam caindo com uma sequência algo dispersa, mas começavam a fazer sentido, já sabia de onde vinha a música. Tocava num restaurante de praia, depois de um jantar com muitas pessoas, e tinha ficado gravada no meu corpo quando saí para a falésia e desci as escadas até à praia. impressão complexa, esta, quando a recebi no carro, era já feita de tantas camadas de imagens e associações de impressões. não podia dizer da impressão que a música me causara que estava no passado nem no presente, ela era puro virtual, sempre outra, à luz do devir da minha vida.

domingo, 12 de novembro de 2023

Primeira memória

Sempre que encontro um certo tipo de porta, aquelas portas, muitas vezes em cozinhas, que têm uma parte de vidro em cima, sou tomada por uma estranha e intensa mistura de sensações, ao mesmo tempo angustiante e reconfortante. Todas essas portas, estejam elas onde estiverem e esteja eu onde estiver, me são muito familiares e me provocam esta forte impressão que encontro na minha infância. Tento aguentar-me tanto quanto posso em bicos de pés. Não aguento e vou abaixo, mas volto aos biquinhos dos dedos, já doridos, para os olhos alcançarem o vidro da porta e esqueirar o olhar para lá do vidro. Há imensa luz lá fora. É quase ofuscante. Sinto o calor do sol a tocar-me na pele. O queixo, quando me ponho em bicos de pés, alcança a bandeira da janela, apoiando-se nela, como que encaixado, contra o vidro frio. Vejo-me assim, pequenina, naquela posição de equilíbrio e chamo alguém: Bebu, Bebu. Só uma nesga de árvores, talvez ameixeiras, ao fundo. Dele já não há rastro. Mas a janela é o lugar onde devo ficar, sempre a tentar alcançar com os olhos, agarrada como posso, esse mundo lá fora para onde fugiu o meu irmão.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Dos nomes e da guerra

Walter Benjamin disse-nos que se deve claramente distinguir o limiar da fronteira. Estamos a testemunhar, em massa, uma guerra onde se confundem fronteiras e limiares, onde as vidas daqueles que foram esperados em terra, mesmo se numa terra imaginária, não são vistas pelo mundo poderoso do progresso como vidas. Vidas sem nome em terras imaginárias. Quando uma mãe escreve os nomes dos filhos que a qualquer momento poderão estar mortos no seu corpo quente e vivo, quando as crianças, absolutamente expostas à barbárie, fazem pulseiras com os seus nomes, estes gestos são a preparação de um rito que dá conta da experiência da passagem da vida à morte, mas também da morte à vida. Aquele a quem foi dado um nome foi esperado em terra. Dar um nome é quando se nasce um gesto de esperança, quando se morre o nome guarda os traços dessa vida vivida e que se esperou ser vivida. Se dizer os nomes daqueles que morreram é sempre um modo de lidar com o o sagrado e o profano da morte, marcar os corpos daqueles que ainda estão vivos com o nome é o gesto de quem, ainda que tenha os olhos virados apenas para o passado, procura resgatar, nos escombros, a experiência do limiar, o direito de existir.