A água cai em cordões verticais e vivos, cantando. Cria-se uma nova, ou muito velha, solidão, onde o súbito gosto da pureza se mistura ao temor. A água é uma matéria em si própria delicadíssima e exaltante. Talvez os homens desejassem estender-lhe as mãos, voltando-as de todos os lados, para ficarem bem molhadas. É uma água vasta e nua, maternal.
As casas tornam-se muito isoladas, a uma severa distância umas das outras. Não é tempo de comércio entre as pessoas, de qualquer espécie de fraternidade. Sabe-se pouco a respeito da água da chuva. É esta uma ilha estéril, fechada em cal e areia. Há as estiagens. E então sucede o absurdo. O talento do absurdo é criar o excesso. Por isso cai às vezes uma chuva avassaladora. A carne concentra-se para a receber, e aceita-a.
Poder-se-ia sair das casas, e não somente estender as mãos à grande chuva, mas deixá-la mesmo encharcar as roupas e a pele, limpar o homem de uma porção de coisas que não prestam. Seria possível andar nu debaixo da água cantante, as próprias pessoas cantando com alegria e terror sagrado.
Mas cada qual se encerra na sua solidão. Liga-se às vontades celestes por uma comoção enigmática.
Os caminhos confundem-se, os telhados de terra batida alem, o enxurro ganha os campos. Desaparece essa frágil ordem que se cria para andar sobre os abismos. Em dois dias perdem-se todas as pistas do ano. Desapareceram os centros da vida, centros de audaz inteligência, onde se teceu, à volta, o pavor da morte - a malícia de enganá-la e a pequena vitória com seu anel de alegria. Absorveu-os a água.
(de: uma ilha em sketches. Herberto Helder)
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