domingo, 4 de novembro de 2018

Pequena colher de pau


Vive com outros talheres já há muitos anos numa gaveta da cozinha de uma cidade branca e é frequentemente usada. É um palmo de pau, escurecido do uso e do tempo. Mexe muitos ovos e outros alimentos cozinhados na frigideira. É tão pequena que quase não é usada em panelas ou em tachos. E guarda na sua matéria porosa e húmida tantas imagens. Os mergulhos naquela lagoa de águas límpidas onde jazia uma aldeia submersa e depois cozinhar o arroz de salsicha no pequeno tacho amolgado (por onde andará?), contigo a proteger do vento a chama do minúsculo campingaz azul (que banquetes saiam dali ou como a fome constrói palácios), o orvalho de maresia das praias rochosas, o amontoado de coisas, o suor, o calor quase insuportável da velha tenda. Também as nossas vozes. Todas estas imagens, na matéria tão viva como antes da pequena colher de pau, enquanto ela durar.