havia uma estranha forma de massa atmosférica, aérea, que há algum tempo parecia posicionar-se em seu redor. era densa, uma espécie de airbag. por vezes aquilo
disparava, algum solavanco mais forte, e ela ficava completamente enterrada naquela coisa almofadada, algo agradecida,
pelo amortecimento do choque, mas ao mesmo tempo cada vez mais intolerante ao
facto de todo o espaço vazio à sua volta estar preenchido por um mecanismo de
defesa tão espaçoso e claustrofóbico. na maior parte das vezes essa espécie de
airbag estava recolhido, ainda que preenchesse à mesma todo espaço, como se se
constituísse, tácita e inexplicitamente, como a própria condição formal da existência do espaço. os direitos do
espaço enquanto forma pura iam todos por água abaixo e o vazio não era pleno, mas um falso vazio,
mais do que definido e predefinido por essa condição airbagiana do espaço.
num sonho muito agitado, esta
ideia que não a largava circulava de todas as formas e feitios, assumindo uma
série de variações nas narrativas fragmentadas pelo constante despertar.
a luz estava ligada e iluminava o espaço em demasia, a noite não parecia bem uma noite. não havia suficiente
impulso vigilante para a ir desligar. tudo acontecia num limbo que prendia os
movimentos sensório-motores. tentava em vão movimentar um braço, alcançar o
interruptor da luz com o olhar e esperar uma reacção corporal em conformidade. mas nada daquilo tendia efectivamente
para a acção e tudo se voltava a misturar com o problema do airbag, que era
urgente solucionar antes do dia recomeçar. se nos carros há um botão para
desactivar o airbag, esse botão também terá de existir fora dos carros, nestes
airbags não menos reais, mas feitos de matéria onírica. a cada micro-despertar
- a luz, era preciso desligar a luz para encontrar o botão do airbag - o botão
voltava a sumir-se, bem como todas as vias que a ele pareciam estar a levar.
num dos primeiros sonhos ela conversava no banco traseiro de um táxi sobre o
tempo em que os carros não tinham airbag e o taxista, um emigrante de sotaque indecifrável, assegurava que os airbags sempre tinham existido, que até os tuctucs, esses
sucedâneos dos veículos primitivos à tracção humana, os tinham, mas que vinham
de um mecanismo interior da máquina, não podendo ser activados ou desactivados
quando se queria. a história do airbag começava a ganhar contornos
labirínticos e os labirintos pareciam ser de todos os tipos,
desde os mais centrados aos acéfalos, absolutamente sem centro nenhum, àqueles
que eram só uma linha. e num comboio em que lia descontraidamente a paisagem
chuvosa com a sobreposição das formas da água da chuva no vidro e escrevinhava
gatafunhos tortos pela trepidação, novamente a história do airbag começou a
fazer-se notar. os desenhos criados pela água da chuva no vidro do comboio eram bastante consoladores. o que era vertiginoso era quando o comboio, depois de parar, voltava a ganhar
velocidade, e as linhas moventes agarradas ao vidro lutavam pela sua vida,
colando-se a ele tanto quanto podiam, num magnetismo qualquer entre a água, o ar e o vidro,
mas iam mirrando e desaparecendo, sugadas por um fantasmagórico vácuo, até serem apenas gotículas desfazendo-se em nada. depois novamente a chuva, as formas e a paragem, a janela ou o quadro. o frenético movimento das formas semi-transparentes e aparentemente diáfanas que escondia uma densidade e opacidade maiores. era preciso desactivar aquilo. levantou-se bruscamente. ia finalmente
apagar a luz, para se encontrar com a noite. mas ainda estava no comboio, o
interruptor da luz tinha desaparecido e ao longe havia uma passagem entre
carruagens, que deveria atravessar. um gato saltou subitamente por cima do seu corpo.
soltou um grito seco e levantou-se. apagou a luz. não era o botão do airbag, mas era como se fosse.