sexta-feira, 13 de setembro de 2024

casa

Quando houver uma casa onde possas chegar, entrar a transpirar e a precisar de água e de descanso, quando numa casa simples possam desaguar livremente os pensamentos fluidos e dispersos e as sensações confusas do rio da tua consciência, no ar, à volta da cama, dos livros, na cozinha, enquanto lavas a loiça, entre os gestos desatentos dos teus amores e no colo dos teus gatos, fica por lá, seja lá onde for, até talvez nem seja uma casa assim, talvez uma outra casa, uma casa qualquer.

domingo, 8 de setembro de 2024


A pintura ensina a dançar.

A sala do museu estava cheia. Muitos tinham phones nos ouvidos e olhavam para os quadros, à medida que ouviam o audio guia, outros, acompanhados, trocavam impressões discretamente, mas não esquecerei uma cena belíssima. Ao lado destes quadros, um homem e uma mulher passaram de uma sala à outra a dançar. Ela ensinava-lhe como dar os passos e ele cumpria, compenetrado. Abraçados e a dançar, inspirados pelas pinturas do Renoir, passaram ao de leve pelas pessoas, sem nunca pararem a sua dança.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

pensar através de histórias

Now I wanted to show that whatever the word story means in the story which I told you, the fact of thinking in terms of stories does not isolate human beings as something separate from the starfish and the sea anemones, the coconut palms and the primroses. Rather, if the world be connected, if I am at all fundamentally right in what I am saying, then thinking in terms of stories must be shared by all mind or minds, whether ours or those of redwood forests and sea anemones.” 


Gregory Bateson 

sábado, 1 de junho de 2024

um princípio do chikung que o meu professor disse numa aula, que me inspira e comove particularmente:  "as articulações são as portas por onde circula a energia vital e existe uma inteligência nas articulações, existe uma capacidade de adaptação das articulações. a forma como eu coordeno as minhas articulações é a forma como eu coordeno a vida e se as articulações estão mais disponíveis, então a vida está mais disponível..."

este princípio, para mim, aplica-se ao corpo e em geral, a toda a obra de arte, ao filme, a toda a relação humana ou entre humanos e não humanos, ou seja a todo o composto ( de sensações, diriam Deleuze e Guattari) vivo.

sábado, 25 de maio de 2024

The Genesis of a Work of Art

On 22 April 1950, a panel discussion took place over several days amongst a group of artists, writers, and curators, moderated by Robert Motherwell, the transcript of which was first published in Modern Artists in America, no. 1, 1950. 

On the third day of the discussion, Motherwell opened with the following remarks before reading aloud questions written by the artists.

Motherwell: "The questions we all have written  down fall into three categories, though they overlap. One is a series of questions that are historical, which Grippe, Ernst, Hare, Reinhardt, Rarr, and Gottlieb ask; the largest number of questions are strictly aesthetic questions, about the process of creation and about the quality of creative works—the questions of Ferber, Hare, Raziotes, Lippold, Smith, Sterne, Hoffman, Riala, Lassaw, and Bourgeois. 

Five people, Pousette-Dart, Lipton, Tomlin, Newman, and Rrooks, have asked an identical question: a question of community— "what is it that binds us together (if there is something that binds us together)? Would you like me to read all the questions, either anonymously or signed?"

The artists unanimously agreed to have them read aloud by Motherwell attributed to the author of the question.

The following is the question proposed by Louise Bourgeois.

The Genesis of Work of Art; or in what circumstance is a work of art born:

1. Definition of the term "genesis"- process of creation. Is it the process of being born or the process of giving birth?

2. What causes the work of art to be born? What is the primary impulse? What makes the artist work? Is it toescape from depression (filling a void)? Is it to record confidence or pleasure? Is it to understand and solve a formal problem and reorder the world?

3. What conditions the birth and growth of the work of art?

  1. (a)  Before the act of creation:
    Sociological aspect (surroundings and milieu). Taine ato theory of the milieu.
    Personal aspect.

  2. (b)  During the process of creation:
    Experience undergone while the work is being done. Resistance of the medium.
    Properties of the medium.


    Louise Bourgeois, DESTRUCTION OF THE FATHER, RECONSTRUCTION OF THE FATHER. WRITINGS AND INTERVIEWS 1923-1997

a memória involuntária segundo Bourgeois

I need my memories. They are my documents. I keep watch over them. They are my privacy and I am intensely jealous of them. Cézanne said,"I am jealous of my little sensations." To reminisce and woolgather is negative. You have to differentiate between memories. Are you going to them or are they coming to you. If you are going to them, you are wasting time. Nostalgia is not productive. If they come to you, they are the seeds for sculpture.

[Louise Bourgeois]

terça-feira, 21 de maio de 2024

alguém de quem gosto muito escreveu sobre os seus autores preferidos, tratando-os pelo nome próprio, numa bela homenagem que nos retira dessa maneira sempre desviada da experiência viva que o mundo académico e o mundo em geral têm de se relacionar com as coisas. ou seja, um autor de um pensamento que lhe diz qualquer coisa não é por ele visto como um autor, em abstracto, de um pensamento abstracto, desligado de uma experiência, mas como um amigo, uma forma viva de amizade. gostava de transpor esta sua proposta para o cinema, os filmes. há com os filmes uma relação que se cria, também, que nos melhores casos se pode conceber como uma amizade. a sua forma de vida, um certo ritmo, uma sonoridade, um grupo de crianças que saem de uma ruína, um vento que se faz visível no movimento das searas, o encontro entre duas mãos, um raio verde, ressoam ou não connosco, permitindo ou não que nos misturemos com esses gestos e acontecimentos. para mim é isto. tudo o resto me é cada vez mais indiferente, confesso.

domingo, 12 de maio de 2024

caixinhas mágicas

A minha avó Eunice tinha um fio de prata, com um pêndulo que era uma moldura fechada muito bonita. Lá dentro estava um minúsculo retrato oval do rosto do meu avô Manuel e quando a minha avó usava este fio, a fotografia do meu avô ficava mesmo perto do seu coração. Quando, pequena, eu abria a portinha da moldura para dizer olá ao meu avô e estar um pouco com ele, como o meu contacto com o corpo da minha avó era muito próximo, tinha a sensação de uma presença, que a minha avó lhe emprestava e que fez com que a minha relação com ele, de alguma maneira, se tenha ligado à vívida presença de um corpo (o da minha avó), apesar de nunca o ter conhecido em vida.

[texto perdido e achado, escrito em 21 de dezembro de 2021]


caixa de música

Num momento difícil de despedida e arrumações de coisas antigas de família, encontrei a caixa de música da minha avó. Quando era pequena passava muito tempo da minha vida em sua casa e costumava dormir na sua cama. Na mesinha de cabeceira do lado esquerdo, costumava estar guardada, dentro de uma pequena porta, para além de outros objectos que faziam igualmente parte das minhas explorações infantis, uma caixa de música de madeira. Era uma dessas caixas comuns, tipo guarda-jóias, fabricada na China. Dentro da caixa, a minha avó tinha guardadas, como que por acaso, pequeninas coisas sem importância, mas que faziam as minhas delícias, como pequenas chaves, fitas de renda ou alfinetes de dama. Havia sempre alguns pequenos objectos que eu não conseguia perceber o que seriam, o que permitia dar asas à imaginação. Tantos mundos possíveis, naquela caixa. Durante certo período da minha vida, antes de dormir, lá ia eu buscar a caixa, verificava se estava tudo no lugar, desarrumava e voltava a arrumar as pequenas coisas e finalmente punha a caixa a tocar, dando corda com a pequena manivela que se encontrava por baixo da caixa. Não sei precisar, mas imagino que aquela tenha sido das primeiras caixas de música que conheci, ou mais provavelmente a primeira. Numa fase da minha vida em que passeava muito por feiras da ladra e lojas de velharias, as caixas de música eram um dos meus fetiches. Comprei uma vez uma bem bonita, antiga, de madeira pintada, mas o cilindro giratório do mecanismo musical avariou e perdi o interesse nela. Mais tarde, quando as minhas filhas nasceram, desenvolvi uma pequena paixão por caixas de música. A primeira que comprei, antes da minha filha nascer, foi uma festa, tinha uma bailarina que dançava quando a caixa abria. Mais tarde, para a outra filha, outra semelhante, mas com outro padrão. Ambas as caixas, feitas de materiais muito mais efémeros do que a madeira, eram, também estas, como que guarda-jóias, com espaço para guardar pequenos objectos. Quando abria cada uma dessas caixas de música, sentia sempre uma emoção muito intensa e como que mágica, vinda de outros mundos. Que eu me lembre, nesses momentos, a caixa de música da minha avó não estava no meu pensamento, talvez até a tivesse esquecido. Mas se a minha memória voluntária não a procurava activamente, a verdade é que, afinal, ela estava involuntariamente guardada em mim. Ao encontrá-la, tantos anos depois, arrumada num armário, o primeiro instinto, imediato, foi ver o que tinha dentro. Não estavam as fitinhas, nem as pequenas chaves, apenas um pequeno gancho de cabelo. Logo depois, apalpei a parte de baixo da caixa, à procura da manivela, para lhe dar corda, mas não estava lá. De repente, o gesto estava interrompido, não o podia continuar. Procurei então algum utensílio que pudesse servir de manivela e encontrei um alicate. Dei a corda e abri a caixa, que começou, tímida e enferrujadamente, a tocar, como quem diz, sim, sou eu. Esta música só eu sei tocar. Reconheci então essa emoção que senti ao abrir todas essas outras caixas de música, réplicas desta caixa de música primordial, que afinal tinha estado sempre comigo. 

um vento na cabeça


um vento na cabeça.

ou uma ventania

uma corrente de ar

ar frio, ar quente

uma brisa, um sopro, uma lufada

ar do mar ou vento siroco.

todavia, um vento na cabeça

que polinize.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

feixe de luz

que coisa é essa que distingue o ângulo preciso desenhado pela mesa de mármore da cozinha, o feixe geométrico de luz que, projectado do parapeito da janela com o canteiro de sardinheiras, atravessa o mármore vergado de veias rosa, como vasos sanguíneos da memória, escritos na pedra, e se prolonga até ao chão, reflectindo-se em múltiplas dimensões, vindo desse passado tão próximo como longínquo, atravessando o presente e prolongando-se naturalmente para fora do tempo. que coisa é essa que distingue esta memória do preciso reflexo, do primeiro reflexo, de todos os reflexos juntos, do feixe de luz do parapeito da janela com o canteiro de sardinheiras que atravessou o mármore da mesa da cozinha, na casa da minha avó. os meus cotovelos pousados em cima da mesa. e o frio daquele mármore e o calor do feixe de luz, colados à minha pele. esta pele, agora.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

pensamentos soltos

 

da interrupção

para brecht, a arte da interrupção permitia a descontextualização, a retirada das coisas dos lugares habituais, abrindo uma brecha para o pensamento poder acontecer, em vez de permanecer adormecido, embalado pela continuidade da acção. claro que a arte da interrupção, quando brecht escreveu e pensou sobre ela, tem todo um contexto, um aparato tecnológico de uma época, que fazia expandir um certo tipo de percepção, com o cinema, a rádio... a interrupção, a possibilidade do corte, montagem e desmontagem, estavam em cima da mesa, mas o paradigma (perceptivo) ainda era o da continuidade. hoje, continuo a achar que a interrupção é algo não só interessante, mas fundamental, poética e politicamente, mas o paradigma da percepção já não é o da continuidade. é como se a própria ideia de continuidade estivesse algo, não direi obsoleta, mas fosse, simplesmente, desconhecida. já não se sabe o que é continuar.  pensar sobre isto.


da hora da refeição

há uns tempos encontrei um amiguinho que andou comigo na preparatória. nessa altura não lhe ligava nenhuma. então, anos depois, numa noite em que tomámos um copo, falou-me de uma sua teoria sobre o modo como comemos. que o mais importante era comermos quando tínhamos fome. que essa coisa das refeições era uma invenção castradora e sem sentido, que não havia nada de mais doente do que comer sem vontade. que em sua casa, quando eram pequenos, cada um comia quando tinha fome. e que sua relação com a comida era assim. sentia que era menos um peso na existência, quando olhava para a importância que as pessoas davam às horas da refeição. sentia-se mesmo privilegiado por ter tido uma educação que o poupou deste fardo. na altura, apesar de achar algo sedutora, esta maneira mais animal de conceber o alimento e o acto de comer,  fiquei meio perplexa com este grau de liberdade. na minha casa não havia nenhuma ditadura da refeição mas, sempre que estávamos todos em casa, sentávamo-nos juntos para comer. era, de certa forma, um ritual. ultimamente tenho-me lembrado várias vezes desta conversa com o meu amigo. 


sábado, 9 de março de 2024

o cinema

 

como aquelas explorações nocturnas, por grutas, sonhos, corredores como passagens sem destino, em que reconhecemos as figuras pelo seu ritmo e não pelos seus traços. são figuras que não pretendem representar nada, mas que contêm, em potência, algo de vivo, que se viveu ou poderá viver. acontece uma misteriosa arrumação destas figuras, instauram-se relações que acontecem por magnetismos insondáveis, entre imagens que não se deixam representar por completo, apenas aos pedaços, pedaços de corpos, mãos, rostos semi-conhecidos, misturados com o desconhecido, espécie de figuração monstruosa do real.

sexta-feira, 8 de março de 2024

abrir para dentro


A atenção ao mundo não vem de dentro. O ensimesmar-se numa mania identitária reside talvez no mal entendido do movimento ser de dentro para fora: olhos que abrem para fora, botões fechados que desabrocham, mãos que se estendem, o corpo que caminha pela estrada afora, a atenção que se activa, despertando de um estado de adormecimento para o mundo que está fora. Regra geral dá-se sempre primazia a um estado anterior interior, a um dentro que se abre, do útero ao mundo. Mas é efectivamente apenas um hábito da razão. Uma imagem a que estamos acostumados. O cinema é naturalmente uma forma privilegiada de romper com essa imagem do dentro-fora, pois nele está-se sempre já no mundo. Fora. O movimento de abertura faz-se de fora para dentro, quer dizer, ao contrário, sem deixar de ser abertura. Num modo especial de ser do aberto, numa imobilização que vem de um adentrar-se desventrando-se.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

todos os passos

Convoco todos os passos que dei, todas as árvores que vi e todas as gotas da chuva que senti, todo o chilrear de pássaros que ouvi. Em todos os passos que dei há ainda alguns que não dei. Convoco-os a todos. Estes meus passos que agora dou nesta terra não são estes meus passos que agora dou nesta terra. São os primeiros passos que dei, são os passos que dava caminhando ao lado do ardente desconhecido, são os passos do corpo em queda livre depois da morte trespassar em vida, são os passos alegres e leves, os amorosos, os dedicados, os passos confiantes, da mãe que embala a cria, os passos desconfiados, e os aterrorizados. Estes passos não são estes passos, são todos os passos.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

contemplações


A rememoração não é uma lembrança. É a suspensão de uma certa compreensão do tempo, o tempo cronológico, que sem que saibamos definir, vamos, desde cedo, gerindo, ou ele a nós. Suspender essa compreensão do tempo tem consequências existenciais profundas. A contemplação é um modo de compreensão do tempo e do espaço que advém dessa suspensão. Passear numa cidade sob influência de uma ou de outra compreensão do tempo é tão diferente como estar doente ou são, adormecido ou desperto para o mundo.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

uma infância

Há no cinema qualquer coisa que tem a ver com a infância. Acredito que quando a arte nos acontece, ela se ligue sempre à infância. Não digo à nossa infância, muito menos a infância de um eu, porque não se trata, nesse acontecimento, de uma rememoração ou de um reconhecimento da infância que eu, tu, ele ou ela, vivemos. Ainda que isso também possa acontecer e não haja mal nisso, quando a arte acontece há uma expansão da infância, ela abre um tempo e um espaço expandidos. É verdade que encontro no Pierrot, le Fou, um dos meus filmes preferidos, pormenores directamente ligados à minha infância vivida e pessoal. Muitos daqueles postais de pintura moderna, colados nas paredes, a banda desenhada que percorre o filme, os livros, tudo aquilo era, literalmente, muito lá de casa, como hoje se diz tanto. Mas não é disso que é feito o acontecimento estético, e se se procura no conforto do familiar e do pessoal uma percepção artística, penso que nos enganamos redondamente. Não, a infância que no Pierrot se me abre (ou me abre, fende?), é uma infância não reconhecida e indefinida, uma infância em devir, que também me acontece em filmes tão diferentes como The Searchers, The Ghost and Mrs Muir, El Sol Del Membrillo ou La Région Centrale... A infância da arte não é, não pode ser minha nem tua. Acontece, como disse um filósofo genial, como a chuva: "it rains", com a força do impessoal, do isso. O fenómeno da infância como uma chuva, um vento.