domingo, 12 de maio de 2024

caixa de música

Num momento difícil de despedida e arrumações de coisas antigas de família, encontrei a caixa de música da minha avó. Quando era pequena passava muito tempo da minha vida em sua casa e costumava dormir na sua cama. Na mesinha de cabeceira do lado esquerdo, costumava estar guardada, dentro de uma pequena porta, para além de outros objectos que faziam igualmente parte das minhas explorações infantis, uma caixa de música de madeira. Era uma dessas caixas comuns, tipo guarda-jóias, fabricada na China. Dentro da caixa, a minha avó tinha guardadas, como que por acaso, pequeninas coisas sem importância, mas que faziam as minhas delícias, como pequenas chaves, fitas de renda ou alfinetes de dama. Havia sempre alguns pequenos objectos que eu não conseguia perceber o que seriam, o que permitia dar asas à imaginação. Tantos mundos possíveis, naquela caixa. Durante certo período da minha vida, antes de dormir, lá ia eu buscar a caixa, verificava se estava tudo no lugar, desarrumava e voltava a arrumar as pequenas coisas e finalmente punha a caixa a tocar, dando corda com a pequena manivela que se encontrava por baixo da caixa. Não sei precisar, mas imagino que aquela tenha sido das primeiras caixas de música que conheci, ou mais provavelmente a primeira. Numa fase da minha vida em que passeava muito por feiras da ladra e lojas de velharias, as caixas de música eram um dos meus fetiches. Comprei uma vez uma bem bonita, antiga, de madeira pintada, mas o cilindro giratório do mecanismo musical avariou e perdi o interesse nela. Mais tarde, quando as minhas filhas nasceram, desenvolvi uma pequena paixão por caixas de música. A primeira que comprei, antes da minha filha nascer, foi uma festa, tinha uma bailarina que dançava quando a caixa abria. Mais tarde, para a outra filha, outra semelhante, mas com outro padrão. Ambas as caixas, feitas de materiais muito mais efémeros do que a madeira, eram, também estas, como que guarda-jóias, com espaço para guardar pequenos objectos. Quando abria cada uma dessas caixas de música, sentia sempre uma emoção muito intensa e como que mágica, vinda de outros mundos. Que eu me lembre, nesses momentos, a caixa de música da minha avó não estava no meu pensamento, talvez até a tivesse esquecido. Mas se a minha memória voluntária não a procurava activamente, a verdade é que, afinal, ela estava involuntariamente guardada em mim. Ao encontrá-la, tantos anos depois, arrumada num armário, o primeiro instinto, imediato, foi ver o que tinha dentro. Não estavam as fitinhas, nem as pequenas chaves, apenas um pequeno gancho de cabelo. Logo depois, apalpei a parte de baixo da caixa, à procura da manivela, para lhe dar corda, mas não estava lá. De repente, o gesto estava interrompido, não o podia continuar. Procurei então algum utensílio que pudesse servir de manivela e encontrei um alicate. Dei a corda e abri a caixa, que começou, tímida e enferrujadamente, a tocar, como quem diz, sim, sou eu. Esta música só eu sei tocar. Reconheci então essa emoção que senti ao abrir todas essas outras caixas de música, réplicas desta caixa de música primordial, que afinal tinha estado sempre comigo. 

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