sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

uma infância

Há no cinema qualquer coisa que tem a ver com a infância. Acredito que quando a arte nos acontece, ela se ligue sempre à infância. Não digo à nossa infância, muito menos a infância de um eu, porque não se trata, nesse acontecimento, de uma rememoração ou de um reconhecimento da infância que eu, tu, ele ou ela, vivemos. Ainda que isso também possa acontecer e não haja mal nisso, quando a arte acontece há uma expansão da infância, ela abre um tempo e um espaço expandidos. É verdade que encontro no Pierrot, le Fou, um dos meus filmes preferidos, pormenores directamente ligados à minha infância vivida e pessoal. Muitos daqueles postais de pintura moderna, colados nas paredes, a banda desenhada que percorre o filme, os livros, tudo aquilo era, literalmente, muito lá de casa, como hoje se diz tanto. Mas não é disso que é feito o acontecimento estético, e se se procura no conforto do familiar e do pessoal uma percepção artística, penso que nos enganamos redondamente. Não, a infância que no Pierrot se me abre (ou me abre, fende?), é uma infância não reconhecida e indefinida, uma infância em devir, que também me acontece em filmes tão diferentes como The Searchers, The Ghost and Mrs Muir, El Sol Del Membrillo ou La Région Centrale... A infância da arte não é, não pode ser minha nem tua. Acontece, como disse um filósofo genial, como a chuva: "it rains", com a força do impessoal, do isso. O fenómeno da infância como uma chuva, um vento.

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