domingo, 12 de novembro de 2023

primeira memória

Sempre que encontro um certo tipo de porta, aquelas portas, muitas vezes em cozinhas, que têm uma parte de vidro em cima, sou tomada por uma estranha e intensa mistura de sensações, ao mesmo tempo angustiante e reconfortante. Todas essas portas, estejam elas onde estiverem e esteja eu onde estiver, me são muito familiares e me provocam esta forte impressão que encontro na minha infância. Tento aguentar-me tanto quanto posso em bicos de pés. Não aguento e vou abaixo, mas volto aos biquinhos dos dedos, já doridos, para os olhos alcançarem o vidro da porta e esqueirar o olhar para lá do vidro. Há imensa luz lá fora. É quase ofuscante. Sinto o calor do sol a tocar-me na pele. O queixo, quando me ponho em bicos de pés, alcança a bandeira da janela, apoiando-se nela, como que encaixado, contra o vidro frio. Vejo-me assim, pequenina, naquela posição de equilíbrio e chamo alguém: Bebu, Bebu. Só uma nesga de árvores, talvez ameixeiras, ao fundo. Dele já não há rastro. Mas a janela é o lugar onde devo ficar, sempre a tentar alcançar com os olhos, agarrada como posso, esse mundo lá fora para onde fugiu o meu irmão.

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