quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

quando me ligaram não dei por nada, muitas vezes não dou atenção às chamadas de números que desconheço, para além de que percorria as ruas da cidade como nos tempos em que não havia telemóveis, estava completamente mergulhada nas ruas, envolvida por cada um dos seus cantos, pelo modo como os corpos as ocupavam, era sexta-feira à noite, fim-de-semana, portanto, e havia um tempo que neles se fazia notar, um cansaço também, no modo como se encostavam nas paredes ou nas paragens dos autocarros, espalhando-se, em grupos, na maneira como os casais conversavam, como se medissem alguma espécie de coisa: contas, forças, desejos, um certo grau de exaustão. ouvi o telefone e atendi sem pensar. sim, era eu. sim, pedia desculpa, mas não tinha ouvido. sim, claro que sim, estaria lá dentro de meia hora. bruscamente a cidade voltava a ser um mapa geográfico, subitamente era necessário substituir o mapa afectivo em que tinha mergulhado pelas coordenadas de orientação mensuráveis em termos de acções. mentalmente imaginei o mais concentradamente possível o trajecto mais rápido para chegar ao hospital. alguém se dirigiu a mim com passos largos e determinados. naquele momento tudo podia acontecer, frequentemente tinha os encontros mais estranhos em momentos assim. era uma mulher dos seus sessenta e muitos anos, bonita, vestida com uma túnica que me captou particular atenção, de uma cor e textura ferrugem que parecia lápis de cera pastel e de cabelo branco apanhado e pele muito branca. entregou-me, num gesto semi-secreto um pequeno saco de plástico, que imediatamente acatei com a mesma discrição e segredou-me ao ouvido que também ela muitas vezes se esquecia, curvando-se de repente para acariciar um cão que ao que parecia acabara de fazer as suas necessidades ali, no chão. enfiei o saco de plástico entre ela e o cão e apressei-me a sair dali, sem dizer nada, voltando ao meu trajecto mental. seguindo-o, tal como o tinha imaginado, até conseguir finalmente apanhar um táxi.

por vezes espantava-me com a simpatia e celeridade do atendimento nos hospitais públicos. bastou dizer o nome, deixar a minha identificação, e num minuto já estava a entrar para a urgência. encontrá-la-ia na sala do fundo, sempre em frente depois da porta, à espera dos resultados de umas análises. antes de entrar na tal sala passei por uma sala supostamente de enfermagem, em que uma rapariga vestida de azul dos pés à cabeça, numa espécie de fato espacial que fazia o barulho que reconhecia como o barulho dos sacos-cama a roçar no material da tenda quando acampava, preparava a seringa e o braço de uma mulher sentada numa espécie de maca, um pouco desconfortável, para lhe retirar sangue. peço desculpa, pergunto pela sala de tratamentos e ela acompanha-me, mesmo aqui, já cá estamos, ao mesmo tempo que continua a preparar a seringa e com um sorriso tão rasgado que era estranho poder integrá-lo no meio daquele ambiente em que a dor se exprimia por todos os cantos, em gemidos e gestos petrificados, em expressões esvaziadas de qualquer intenção. havia macas ou camas de hospital, não sei definir, ao longo de todo o perímetro da sala. e em cada cama um corpo tapado com uma coberta de azul igual ao do fato da enfermeira. os corpos pareciam todos contorcer-se, ora numa imobilidade extrema ora em movimentos espasmódicos e repetitivos. dei-me conta da minha resistência em olhar para os rostos daqueles corpos. tinha de procurar a minha avó, o rosto e o corpo que lhe correspondiam. tinha de a diferenciar, tinha de sair daquela névoa azulada. não a via e começava a achar que nunca a iria reconhecer ali, naquele lugar, que a ia perder de vista. quando um rapaz gorducho e ainda mais sorridente do que a menina de azul me disse que ali estava ela, a comer um iogurte, que estava óptima, que as análises já estavam prontas e que podíamos ir ter com a médica. quando a vi, sentada numa cadeira de rodas, rompeu-se a atmosfera delirante em que tinha entrado. apertei-lhe a mão fria e ela apertou a minha com tanta força, como se me castigasse pela demora. procurei tirá-la dali, de maneira a que pudéssemos as duas fingir o mais rapidamente possível que aquele lugar não existia, nem que fosse apenas durante alguns instantes.

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