quando me ligaram não dei por
nada, muitas vezes não dou atenção às chamadas de números que desconheço, para
além de que percorria as ruas da cidade como nos tempos em que não havia
telemóveis, estava completamente mergulhada nas ruas, envolvida por cada um dos
seus cantos, pelo modo como os corpos as ocupavam, era sexta-feira à noite,
fim-de-semana, portanto, e havia um tempo que neles se fazia notar, um cansaço
também, no modo como se encostavam nas paredes ou nas paragens dos autocarros,
espalhando-se, em grupos, na maneira como os casais conversavam, como se
medissem alguma espécie de coisa: contas, forças, desejos, um certo grau de exaustão.
ouvi o telefone e atendi sem pensar. sim, era eu. sim, pedia
desculpa, mas não tinha ouvido. sim, claro que sim, estaria lá dentro de meia
hora. bruscamente a cidade voltava a ser um mapa geográfico, subitamente era
necessário substituir o mapa afectivo em que tinha mergulhado pelas coordenadas
de orientação mensuráveis em termos de acções. mentalmente imaginei o mais
concentradamente possível o trajecto mais rápido para chegar ao hospital.
alguém se dirigiu a mim com passos largos e determinados. naquele momento tudo
podia acontecer, frequentemente tinha os encontros mais estranhos em momentos
assim. era uma mulher dos seus sessenta e muitos anos, bonita, vestida com uma túnica
que me captou particular atenção, de uma cor e textura ferrugem que
parecia lápis de cera pastel e de cabelo branco apanhado e pele muito branca.
entregou-me, num gesto semi-secreto um pequeno saco de plástico, que
imediatamente acatei com a mesma discrição e segredou-me ao ouvido que também
ela muitas vezes se esquecia, curvando-se de repente para acariciar um cão que
ao que parecia acabara de fazer as suas necessidades ali, no chão. enfiei o saco
de plástico entre ela e o cão e apressei-me a sair dali, sem dizer nada,
voltando ao meu trajecto mental. seguindo-o, tal como o tinha imaginado, até
conseguir finalmente apanhar um táxi.
por vezes espantava-me com a
simpatia e celeridade do atendimento nos hospitais públicos. bastou dizer o
nome, deixar a minha identificação, e num minuto já estava a entrar para a
urgência. encontrá-la-ia na sala do fundo, sempre em frente depois da porta, à
espera dos resultados de umas análises. antes de entrar na tal sala passei por
uma sala supostamente de enfermagem, em que uma rapariga vestida de azul dos
pés à cabeça, numa espécie de fato espacial que fazia o barulho que reconhecia
como o barulho dos sacos-cama a roçar no material da tenda quando acampava,
preparava a seringa e o braço de uma mulher sentada numa espécie de maca, um
pouco desconfortável, para lhe retirar sangue. peço desculpa, pergunto pela
sala de tratamentos e ela acompanha-me, mesmo aqui, já cá estamos, ao mesmo tempo que continua a preparar a seringa e com um
sorriso tão rasgado que era estranho poder integrá-lo no meio daquele ambiente em que a dor
se exprimia por todos os cantos, em gemidos e gestos petrificados, em expressões
esvaziadas de qualquer intenção. havia macas ou camas de hospital, não sei
definir, ao longo de todo o perímetro da sala. e em cada cama um corpo tapado com
uma coberta de azul igual ao do fato da enfermeira. os corpos pareciam todos
contorcer-se, ora numa imobilidade extrema ora em movimentos espasmódicos e
repetitivos. dei-me conta da minha resistência em olhar para os rostos daqueles
corpos. tinha de procurar a minha avó, o rosto e o corpo que lhe correspondiam.
tinha de a diferenciar, tinha de sair daquela névoa azulada. não a via e
começava a achar que nunca a iria reconhecer ali, naquele lugar, que a ia
perder de vista. quando um rapaz gorducho e ainda mais sorridente do que a
menina de azul me disse que ali estava ela, a comer um iogurte, que estava
óptima, que as análises já estavam prontas e que podíamos ir ter com a médica.
quando a vi, sentada numa cadeira de rodas, rompeu-se a atmosfera delirante em
que tinha entrado. apertei-lhe a mão fria e ela apertou a minha com tanta força,
como se me castigasse pela demora. procurei tirá-la dali, de maneira a que pudéssemos
as duas fingir o mais rapidamente possível que aquele lugar não existia, nem
que fosse apenas durante alguns instantes.