sábado, 26 de março de 2022

estremecer


sentia que guardava um segredo mas não tinha sido escolhida sua guardiã. a guarda acontecera por mero acaso, num dos seus habituais exercícios de atenção às pequenas coisas. 
estava num banco de jardim, a ler e a apanhar sol. parecia abdicar de alguma coisa, não sei o quê, mas numa absoluta e ideal dedicação ao ciclo habitual das pequenas coisas e à espuma dos dias.

da indecisão sobre o suposto segredo brotavam calafrios no corpo, sonhos feitos de planos muito longos em que se perguntava continuamente se estaria acordada ou a dormir, vontade de comer chocolate amargo ou outros alimentos agridoces. dela vinha, sobretudo, um estranho estremecer, suspenso numa certa esperança envolta em nuvens que esfumavam contornos.

sentia-se bem a olhar para os aqueles olhos feitos de mar. por vezes descobria sem nenhuma intenção, para além do puro jogo, que algum olhar acidentalmente se traduzia em gestos, entre as palavras ditas, o silêncio e as muitas por dizer.
a atenção, particularmente apta a perceber tudo o que era pequenino e minúsculo, tão própria de um estado de limiar, era capaz de coisas improváveis: distinguia no cheiro da terra molhada tonalidades precisas de odores, de gente perfeitamente esquecida, de objectos há muito perdidos, de instantes singulares que julgava desaparecidos.
era um tempo de reencontros e de encontros, da impossibilidade de os distinguir, numa expectativa  tingida pelo lugar, o vento, o sol, a chuva, a vida, complexa. 
o hábito cessa. o tempo é ocasião.
tempo perfeito imperfeito. aberto - mais que aberto - escancarado. 
como as fissuras tão brutais dos rochedos de uma praia que, depois de se atravessarem, parecem para sempre habitar os meandros da nossa alma,  abrindo de antemão caminhos que hão de vir.
decido não apagar estas linhas e faço um café.
noutra escala, noutra visão, isto também está nesta sensação que sinto ao mexer o café. todos os tempos contraídos num só tempo, elementar. o movimento do café, a espuma que na chávena dança uma dança do universo. mergulho nas formações espumosas da chávena sem asa, uma chávena que viera de uns tempos de uma outra vida, ainda com uma asa, uma vida que tinha como se fosse minha. entro no ritmo oceânico da espuma do café e dos seus desenhos anamórficos, procurando neles a indecisão, o segredo, as personagens e as cenas perdidas no anonimato.

(escrito em 29/07/2017)

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