sábado, 26 de março de 2022

personagens provisórias ou conjuntos de traços


Há uma coisa que os miúdos fazem imediatamente antes de começar uma brincadeira - pode ser com bonecos da playmobil ou de um filme qualquer, ou mesmo de uma imagem de uma revista - eles transferem-se imediatamente para lá, começando por definir o seu papel: - eu sou este (pode ser um homem, uma flor, uma pedra). E se estiverem vários a brincar fazem-no em grupo - eu sou esta, eu sou este, eu sou aquele. Antes de mais nada há uma personagem a que se adere. Durante a brincadeira, experimenta-se ser assim e assado, vê-se o que dá e não dá para fazer, o que é que a personagem pode fazer, de que truques é capaz, que poderes tem. Depois há outra imagem, outro filme, outras figuras, e volta-se e entrar no papel que se escolhe ou que calha e volta-se a experimentar e a avaliar potências e assim vai-se vivendo uma sucessão de pequenos papéis e essa escolha não parece assim completamente arbitrária no que se refere à pessoa que escolhe, às vezes é mais outras vezes é menos casual e eventualmente vai definindo uma espécie de estilo. Mas o que é interessante na necessidade de um papel para que a brincadeira avance, para que haja a mais pequena acção, é que quando se escolhe ser este ou ser aquele, escolhe-se sobretudo um conjunto de traços expressivos que se vai experimentar, como se se estivesse a experimentar uma roupa por cima da pele. Experimentam-se maneiras de ser, expressões que estão já misturadas com sujeitos, temas e significados. E não há outra maneira de brincar. Escolhe-se uma figura (que também pode ser um cliché, mas não é só um cliché) que tem estas e aquelas qualidades que se vão experimentar e quando a escolha é imediata, sem escolher quase, faz-se com qualidades expressivas (é uma cor, uma tonalidade, um som, um material, etc., que captou a atenção). Assim, antes da menor acção e para que a brincadeira continue o seu movimento, há uma necessidade de aderência a esse conjunto expressivo de traços que constitui uma personagem sempre provisória...


(texto de 2017)

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