sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

isto ainda existe e é verdadeiro, apesar de tudo


(palavra visível)

Apesar de tudo, há ainda as palavras que nos metem medo. Delas irrompe a cega proliferação das imagens. Porque, se ao princípio era o nome, foi dos nomes que nasceram as coisas. Esta realidade suscitada ardentemente pela palavra passa a viver sobre a rede dos nossos sentidos: respira encostada aos pulmões, lateja no sangue, crava-se na cabeça como uma coroa negra. Que fazem os objectos neste espaço tão resolutamente quotidiano? Sim, fazem a nossa vida. A sua acção é o prolongamento do desejo e da malícia da voz que os nomes habitam com a selvajaria vegetal de um paraíso. Se o corpo se levanta do sono, e na própria matéria do adormecimento se formula uma regra do desejo - a palavra torna propício este universo de pedras redondas, águas, madeiras, bichos trémulos, pessoas que nos contemplam de repente. Somos agora a paisagem para a paisagem. A obra do nosso primeiro impulso olha para nós. Somos o imaginário do imaginário. Tens medo? - pergunta-nos a palavra MEDO. Tens medo? Pergunta-nos o MUNDO sensível, visível forma dessa palavra. E a nossa homenagem à invenção é uma pura urgência de medo. Assim caminhamos por entre os objectos domésticos da fé, com a comovida ironia de que, se eles dependem de nós, o nosso destino é dependente do modo como se encontram suspensos sobre a nossa cabeça. Podemos morrer da familiaridade com uma palavra: com a palavra CORPO, por exemplo. Porque esse corpo se fez nosso e é o nosso corpo. Desta maneira, morremos de ter corpo. Se ele estremece, respira, transita, subverte e multiplica noutros corpos a sua funda vocação e provocação de corpo - nele se encontram o súbito reconhecimento e amor do perigo. O corpo morre. Isto ainda existe e é verdadeiro, apesar de tudo. Falo, evidentemente, da realidade. Quero dizer: da poesia. Trata-se da única coisa grave que há, da única coisa simples e frágil. E por isso ironizável. O jogo, o acaso, o alarme, o desafio do espírito e - claro - o ludíbrio.

Herberto Helder. Photomaton & Vox. Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, pp. 57-58.

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