sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

vizinhos

gritaram. gritaram tanto que, depois dos gritos, não parecia possível tudo estar ainda, assim tão precisamente, nos seus lugares. gritaram tanto que depois de cada grito havia uma espécie de solenidade, de zona sagrada, de silêncio absoluto que por vezes parecia tornar-se visível na imagem, talvez de infância, do poço, do eco do grito que vinha de dentro dele e da possibilidade da queda para o lugar de onde brotava esse eco, se nele se abeirassem de vez. esta imagem convinha, talvez, porque parecia haver sempre dois gritos, o grito grito e o seu duplo grito, esse eco que é em si apagamento, arrastado, prolongado, esvaído e sereno, mas que se aproveita até ao último murmúrio. gritaram tanto que havia nesse silêncio depois do grito, mas também antes, uma estranheza não desagradável mas desconfortável, como quando se ouvem os gritos dos nossos vizinhos, de dor, de prazer, e não resta a fazer senão uma certa contemplação. tornaram-se os vizinhos de si mesmos, que curioso, assim entre um grito e o outro.

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