terça-feira, 11 de abril de 2017

devolução

trago tantas pedras e conchas da praia. guardo-as em taças. uma delas, que comprei há muitos anos numa feira da ladra, com uns desenhos verdes, que parecem algas, numa cerâmica amarelada pelo tempo, partiu-se pouco tempo depois de a comprar. com a colagem dos fragmentos e suas falhas, ainda mais apta se tornou a guardar as conchas e as pedras, que precisam de alguma aragem. tenho várias taças e chávenas que, depois de se partirem, adquiriram este estatuto quase religioso, para lá do uso quotidiano que um dia tiveram, do dar de beber ou de comer. as pedras e as conchas, no entanto, amontoam-se e talvez se sintam deslocadas. há uns poucos anos, numa das minhas descidas às profundezas do mar, que é isso que sinto quando colho pedras e conchas, prometi a um rochedo que as devolveria, quando já não precisasse delas. retirava-as do seu contexto natural, prolongava-lhes até um pouco as suas belas formas, enquanto as guardasse numa das minhas taças refeitas de pedaços, mas voltaria a deixá-las no mar. e numa manhã de chuva mas sem chuva e tão branca como fria, achei que era tempo de voltarem à praia, para que pudessem desfazer-se em areia com a implacável erosão marítima, seu destino e natureza. retirei uma a uma, cada pedra e cada concha, da minha taça de algas verdes feita de pedaços, que ficou estranhamente esvaziada. por momentos achei que mais valia levá-la também para a praia do que deixá-la sem as suas conchas e pedras. mas não era lá o seu lugar e deixei-a ficar, em cima da mesa, assim com as suas rachas do lado de dentro bem visíveis e expostas ao vazio.

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