faço um elogio do impessoal na linguagem e um apelo poético e filosófico ao uso correcto da nossa nossa língua, quando esse uso nos libertar em vez de aprisionar.
um elogio do singular impessoal e da potência do neutro que daí vem.
a linguagem é por natureza cruel: obriga a falar quando era para calar, obriga um sujeito a definir-se quando era para se indefinir. mas ela é feita justamente também dos seus buracos, das zonas sem nome e sem dono, dos seus baldios livres de cultura. sem buracos, sem aberturas para o vazio, a linguagem sufoca e sufoca-nos. quem é este nós que a linguagem sufoca? é toda a gente e ninguém, é o impessoal urgente do qual toda e qualquer conjugação dos pronomes pode brotar: eu, tu ele, ela e eles e elas e também elu e elus e nós e vós. a urgência do elu e do elus já vem do sufoco da linguagem. e é por isso que devemos cuidar para que as formas impessoais, essas livres de toda a pessoa, não desapareçam da nossa língua.
há verbos, acções, agires, como o "haver", que são impessoais e livres de sujeito, eles são assim e têm esse direito a existir impessoalmente e fazem por isso respirar a língua. não é só gramática, é uma questão política, o direito ao impessoal numa língua. assim, nunca "começaram a haver", mas "começou a haver" e nunca "houveram", mas "houve", porque haver é como chover, uma potência, uma respiração, e conjugá-lo com pessoas é retirar-lhe o direito a ser livre.